quarta-feira, abril 13, 2005

Um conto: A Porta

1


Àquela hora o passeio estava vazio das formigas que, à luz do dia e na luta por ele, o enchiam dum correr atarefado, uma lufa-lufa em que ele se integrava para pedir um cigarro, umas moedas. Na avenida os carros passam velozes, cegos a tudo que vá além dos semáforos e da língua negra de alcatrão que eles tutelam.

Encoberto na entrada do prédio tremia com a ressaca e sentia-se capaz de tudo para conseguir o passaporte para umas horas amainadas no sofrer que o corroía, precisava de dinheiro para o cavalo. Lá no bairro ninguém lhe fiava e as portas fechavam-se quando passava, junkie de todos conhecido, a fama e também os furtos que ia somando, nas horas iguais a estas negras que agora vivia, destruindo colheitas antigas de laços de amizade, apoucando a solidariedade que se escoava e fugia enquanto ele prosseguia nos seus dias e noites ritmados pela destruição, imparável e sem nenhuma esperança de retorno.

Já tinha reparado nele e nos seus hábitos por diversas vezes pois gostava de passear naquela zona, correndo o passeio só para si sob o manto anónimo dos candeeiros e da luz dos carros voantes, escolhendo sem vergonha e olhares de reprovação as beatas maiores que via pelo chão. Até fora por causa delas que inicialmente reparara nele, pois tinha o hábito de vir à rua fumar e quando o telefone da portaria o chamava largava o cigarro ainda grande, fumável, a ponta a brilhar, tentadora. Daí nascera a sua inimizade pois, certa vez, quando se apressava a apanhá-la foi por ele surpreendido e, em maus modos e com alguns safanões, correra com ele da frontaria do elegante prédio onde fazia vigilância, o átrio forrado a mármore rosa, uma grossa secretária em carvalho na entrada sempre com o jornal aberto, ao fundo as duas portas em inox reluzente dos elevadores.

Desde então evitava a zona mas muitas vezes detinha-se nas sombras dos vãos a espreitá-lo, olhava o porteiro e o seu costumeiro cigarro com ódio, as beatas a que tentava calcular à distância o tamanho quando ele lhes imprimia um arco faiscante, projectado pelos fortes dedos em mola. Ele era robusto mas não muito alto e tinha a certeza que facilmente o derrubaria pois o ferro que sentia contra o peito era pesado. Depois, puxava-o para dentro do hall e roubava-lhe tudo o que fosse possível, carteira, moedas nos bolsos, o relógio e o telemóvel, deixava-o nu de tudo o que valesse uma nota de cinco. E o tabaco, ele se quisesse e quando acordasse que fosse ao passeio catar uma beata, era a sua vez. O frio interior toldava-lhe os pensamentos mas recrescia nele a intenção de assaltá-lo, saciar a dor que sentia por uma dose de droga urgente e que só era possível com dinheiro, e também satisfazer o ódio que lhe nutria. A mão crispou-se no ferro sentindo o conforto do seu frio e peso quando o viu sair para o passeio, já com o maço de cigarros saindo do bolso do jaquetão da farda de segurança, o olhar displicente em volta pelo vazio dos passeios e os carros que seguiam, loucos, sem parar ou olhar para ninguém.

Lentamente, estudando cada avanço, saltitou para outro vão de entrada ficando apenas a um de distância dele, que já fumava o habitual cigarro com os olhos perdidos no fundo da rua onde dois rapazes atravessam a avenida a correr e perdem-se numa transversal, para além deles o vazio, só os carros voadores, o cigarro, o ferro, eles. Escolhera previamente acoitar-se ali para o ataque, quando as costas do porteiro se lhe oferecessem após a beata voar para o passeio que lhe vedara, desprezada numa chuva de fagulhas. Como sempre ele não andou dum lado para outro e, imóvel à porta do prédio, recreava o momento do cigarro com longas pausas virada para um lado da avenida vendo os carros que vinham, ora para outro olhando os que chegavam, ou seriam os mesmo que voltavam, sempre apressados, velozes e cegos ao porteiro distraído e à sua beata insolente, ora quase no ponto em que voaria e, então, seria o seu momento e ia conseguir o dinheiro e a desforra, seria o fim dos arrepios e dos suores que sentia e o obcecavam pela carência. Era uma questão de sorte, também, e estava disposto a arriscar se, quando os dedos traçassem no ar o voo luminoso da beata ele estivesse de costas, antes de se virar para entrar no prédio até ao próximo cigarro.

Na rua tudo está normal, o silêncio protector do vazio, e a mão tirou de dentro da camisa o ferro e postou-o ao longo da perna, dissimulado a um improvável olhar curioso. Os olhos brilhavam e eram duros, semicerrados em finos traços no esgar que a sua cara mostrava, misto de sofrimento e de adrenalina despejada para má escapatória, e a boca ficou seca quando viu que, nos que calculava como os últimos sorveres no cigarro, as costas dele se lhe ofereciam e, com um pouco mais de sorte, assim se manteriam quando se voltasse para entrar no hall do prédio. Assim aconteceu e ele precipitou-se em ágeis passos, que quis e fez silenciosos, furtivos, enquanto vencia os metros que os separavam, aproximando-se da nuca que via como alvo fácil e descuidado, a mão erguendo-se com a arma, pronta a ganhar o embalo final para derrubá-lo.

2

Às quatro da manhã, na esquadra, o graduado de serviço recebeu o telefonema do hospital a confirmar o óbito e chamou-o outra vez ao gabinete. Sobre os papéis que atarefavam a secretária o ferro, trinta e oito centímetros já medidos à luz daquela noite que não tinha fim.
“teve sorte, muita sorte. quando se virou ele teve medo de si e fugiu, depois aquela tragédia do atropelamento. morreu à pouco, nada puderam fazer�
“foi o barulho da porta do prédio ao lado, a abrir-se quando os sensores o sentiram, que me fez olhar para trás. depois e como já lhe contei ele correu para a estrada, a olhar para trás e… pobre coitado�