terça-feira, abril 12, 2005

Serões na varanda

Nunca é demais repeti-lo: a inexistência de televisão, no Moçambique colonial, em muito contribuiu para a grande convivência que se vivia entre famílias ou casais amigos, visitas mútuas, de que tanto me recordo na minha infância em Lourenço Marques.

Quando era em fins-de-semana costumava incluir jantar, por vezes começava num almoço e depois ia-se dar uma volta de carro até à Costa do Sol, a ‘volta dos tristes’, e voltava-se ao ponto de partida com o pretexto de comer o que tinha sobrado, e que se estendia em serão de cavaqueira em volta da mesa ou ouvindo no pick-up velharias que hoje seriam olhadas como raridades. Os pais dissertam sobre negócios e futebol da metrópole, por vezes maçadoras incursões na política onde, como hoje, nunca havia acordo total. As mães, quando se cansavam de gabar os cozinhados mútuos, passavam à crítica dos maridos e loas ao da próxima, e cortavam nos penteados de todas as conhecidas ausentes. Os putos, após o fastio dos doces e das conversas dos adultos, procuram os seus terrenos naturais e, com a ajuda dos brinquedos do da casa se ele existir, ou com um sempre oportuno carrinho de bolso, em baixo da mesa ou no corredor organizam as brincadeiras naquelas noites em que a mãe se esquece das horas e o relógio bate recordes de longevidade ao dia. E, também, com as visitas frequentes a casa uns dos outros vão-se conhecendo os vizinhos, pois, tantas vezes, eles integram o serão comum, ou, naturalmente, os putos vão-se conhecendo uns aos outros e as brincadeiras nascem.

Na flat ao lado da dos meus tios, princípio da Av. de Angola e talvez nem a cinquenta metros do Largo Albasini, morava um casal amigo deles, com uma filha, pitinha que era uns dois anos mais velha que eu. Ivone. À míngua de alternativas mútuas, nesses serões inevitavelmente brincávamos um com o outro, ela menosprezando os meus interesses e dando-me secas de artistas, filmes, músicas, tudo fascínios que não me cabiam no bolso, atulhado com carrinhos, cromos, e chuíngas.

Às vezes íamos para a varanda, procurando espaço desimpedido e o ar da noite e da rua, espreitar quem passa e ver os carros passar, também privacidade e fuga ao controle adulto. Lá dentro havia o cíclico “olha, estás aí ao pé espreita lá para ver o que os miúdos estão a tramar� e, pela janela da sala que dava para a varanda, d vez em quando alguém espreitava para ver se algum estava pendurado das grades ou a descobrir segredos da vida. Tenho uma leve recordação de que a Ivone já tinha mamitas, mas delas nenhuma memória especial pois eram tempos em que as miúdas eram-me seres estranhos, sempre olhadas como muito mariquinhas e umas chatas, totalmente incapazes de compreender o que há de bonito na fotografia dum submarino ou numa espada de pirata, as coisas importantes da vida. Já existia aquela vontade de lhes espreitar as pernas e, quem sabe, ver-lhe a cuequita, objectivo principal do que eu entendia como sexualidade que me estivesse acessível, e fosse percebível. Eu ainda era muito criança e, no meu mundo, as meninas ainda não eram bem vindas.

Ela era mais crescida que eu, mais alta e forte, e já não sei se a brincadeira começou por ela apanhar-me a espreitar-lhe as pernas ou semelhante, e daí caminhou-se para aquela brincadeira de “risos-apalpão-palmada-risos�, eis que a conversa tornou-se íntima, partilha de segredos sussurrados, ambos com medo de sermos apanhados em tais confidências pelos adultos, tão proibidas que pareciam que soavam como pecado e sujeitas aos mais severos castigos. Ela exibindo os seus superiores conhecimentos, contando novos mitos, eu os meus, as curiosidades mútuas pelo fascinante proibido, os olhos brilhando maliciosos e felizes na nova intimidade partilhada, aventura secreta em tudo igual às que se liam nos livros que ‘eles’ escondiam, romances de amor e policiais, mas que se desviavam para o isolamento da casa de banho onde se procuravam avidamente as páginas picantes, palavras proibidas, conjunto delas em que a imaginação voava pelas ausentes, e olhavam-se os beijos sugeridos das fotonovelas, Deve ter sido assim que descobri a masturbação, mas olha a novidade… hoje, os putos fá-lo-ão tendo na mente imagens da televisão ou as fotos de mulheres e homens descascados que vêem em qualquer revista. Na altura em que esses mistérios ainda o eram lia-se o que se podia e imaginava-se o resto, tentando-se confirmar com a vizinha.

Era o que estava a acontecer connosco. Num canto da varanda, o mais longe das janelas que davam para a sala iluminada onde as vozes continuavam alheias ao que lá fora se descobria, os dedos, tímidos, nervosos, acariciam-lhe a perna, ela permissiva pois faz-me o mesmo, a mão pousando no joelho e seguindo, suavemente, seda pura e quente, os olhos imóveis vendo-a e sentindo-a subir, acariciando peles finas, doces, muito doces até porque eram proibidas. Não falávamos, mexíamos, enleados na descoberta mútua de arrepios e de calores, com mil ouvidos a qualquer ruído estranho que prenunciasse sermos descobertos. A primeira vez que alguém sentiu a minha erecção, o meu pilau teso como quando, na casa de banho, lia os diálogos delas com os detectives e os gangster’s, e no ‘Corin Tellado’ da minha irmã as descrições dos tórridos amores, dos secretos, os melhores. A mão dela subiu na minha perna, subiu tacteando sob os calções e ela masturbou-me por segundos até o medo fazê-la recuar, por certo ambos corados, com medo mas empolgados em viver mais daquela aventura de descoberta, mais daquilo tão gostoso, novo, bom. A minha mão também a acariciou e subiu sentindo mais que a pele uma vida nova que me nascia, a acariciei-a no lugar que supunha ser o seu sexo. Anos mais tarde descobri que o fizera na zona da bexiga, e nunca houve vez à reparação do mal percebido. Não sei se para ela é zona erógena, mas foi-o para mim como se do vero se tratasse, garanto, e faço-o sorrindo à ternura que me deixa a lembrança deste engano. É assim que o recordo, eu e a Ivone na varanda do primeiro andar e a metros dos pais, dos adultos, sob a luz dos candeeiros a descobrirmos os mitos e a criar novos, trocando carícias após as quais o mundo duma criança pula e avança, tal e qual o poeta o descobriu e contou.

A ela deixo o beijo adiado quarenta e tal anos, e o perdão pelo cábula que fui da geografia que é importante quando, sob o beijo cúmplice da noite em que se contam os segredos, um corpo novo nasce porque por outro descoberto, acariciado, embrião de desejo. Chamo a isto uma primeira relação sexual, pois essa história da primeira penetração foi medos que se venceram muito depois.