segunda-feira, abril 18, 2005

O ardina

Cena 1:
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À hora do recreio os reclusos saíram para o largo e ensolarado pátio. Nesta paisagem de todos os dias a nota estranha vinha da mesa à sombra do edifício da secretaria, sobre ela um monte de livros, um homem sentado com uma caixa de cartão ao lado.
Quando o grupo de curiosos apresentou consistência digna de oratória, o estranho perguntou em voz alta: "- quem são os da droga?"
O hábito da bicha formou-se num ápice e a primeira cara, sorridente, falou: "- para fumar somos todos!"
Mas não era. Ele apontou para os livros e disse que era para ler, era o "Xicuembo", boa curte.
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Cena 2
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O vendedor entrou na loja de malas e cintos e foi recebido com rubor no sorriso da Maria João, em rima atrás do balcão.
Entre larachas e piropos, muitos risinhos, a mala de mostruário, já com um canto esfolado, foi aberta expondo o conteúdo.
"- são livros!" - exclamou, não escondendo o espanto de quem recorda nela ver colecções de primavera/verão e de outono/inverno há tantos anos como aqueles em que aquele flirt existia, consumado em cada nova colecção. Muitos.
"- lembras-te quando eras uma pitinha, e a vida não parava de sorrir, Maria João?" - insinuou ele, com um livro na mão.
Os olhos dela brilharam e o rubor cresceu, e a sua mão, nervosa, roçou levemente a dele, o reflexo do toque projectando-se no vidro que deixa ver porta-moedas em castanho e preto, bolsas para canetas e óculos, tabacos duma índústria e duma rotina que nada valiam ao lado das memórias que voaram para quando era 'pitinha', e não suspirava atrás do balcão por vendedores em viagem de negócios que querem poupar o dinheiro da pensão. Outro tempo, e já quase que não se recordava da magia especial de ser 'pitinha'.
"- é o "Xicuembo", fala nisso. Mangussos e pitinhas, cheirinhos do que foi realmente importante, bom. Quantos deixo? O teu ofereço-to, claro..."
Claro, suspirou ela. Claro. Xicuembo... pitinha... pitinhas e mangussos... Claro.
Comprou quinze e aceitou o convite dele para jantar, nas próximas noites solitárias leria o livro e esperaria pela nova colecção.
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Cena 3
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Estava quente na carruagem apinhada mas o calor que sentia no sangue e que a afogueava era motivada pela carícia aconchegante da perna dele, e acrescento. Até então só por uma vez os olhares se tinham cruzado, quando ambos tiveram consciência da presença do corpo do outro, 'sentiram-se', sentiram uma presença ávida, insinuante, doce nas emoções que toldavam a viagem num mergulho às sensações íntimas. O encosto dele subsistia desde a estação da Avenida e, quando o comboio fez a longa curva para entrar na recta que vai até Alvalade, já sob os Restauradores, foi mais ou menos aí que ela sentiu em si restaurarem-se desejos que julgava perdidos nos sonhos da adolescência, quando era uma garota e imaginava tórridos romances com príncipes conhecidos no Metro. Sentia a presença dele, adivinhava a masculinidade do macho na firmeza com que o corpo dele a comprimia, sem ser um roçar que seria boçal mas com a afirmação da sua presença, físicamente poderosa e que a incendiava enquanto as paredes negras se sucediam nas janelas que ninguém olha.
Os pensamentos foram quebrados pelo 'pling' electrónico que soou, iminência doutra estação, e os seus olhos procuraram o placard em cristais luminosos, inconscientemente já a calcular quanto tempo tinha para uma decisão, o convite ou a fuga. Leu que não era nem a estação dos Anjos nem a da Alameda, lá dizia em letras formadas por pontinhos vermelhos que piscavam:
"Leia o Xicuembo. De terras onde não havia nem há Metro, mas fala nisso tudo, no que você sente. 14 €, brevemente numa livraria perto de si. Xicuembo"
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Cena 4
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Na secular praça, onde os fiéis compartilhavam o dia em irmandade com os pombos, olhava-se o fumo que persistia negro, cíclicamente negro.
Havia gente de todo o mundo, asiáticos com as suas máquinas que clicavam sempre que alguém soltava ao céu mediterrânico uma baforada de fumo, então nos grupos que a juventude formava a multiracialidade era uma constante, jovens de tez nórdica, pálida, lado a lado com outros doutros tons e de mundos distantes, negros, morenos, o mundo fizera-se representar em todos os seus tons na observação dos sinais de fumo. Para além dos grupos havia muitos observadores isolados, imóveis a contemplar o céu, a coluna de fumo que se elevava mais uma vez, cinzenta, tão cinzenta que sombreava a negro as suas preces e desejos ainda não atendidos. Seria um conclave de espectadores pirómanos mudos, se não se ouvisse um lento murmurar dum tipo alto, tez escura e claros traços de índio norte-americano que, apontando o dedo para os balões de fumo que subiam rumo ao infinito, soletrava, como se acompanhasse com dificuldade uma leitura:
"Xi... cu... embo... Xicuembo. Fa... ça, faça... uma pau... sa... e... leia... Xicu... embo"
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Cena 5
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A bicha para entrega das declarações de impostos estava tão lenta como todas as bichas parecem a quem nelas está atrás. Quando chegou a sua vez e os papéis foram conferidos, rubricados, carimbados, o duplicado foi-lhe a final entregue com um livro de nome estranho que lhe fez associações mentais involuntárias com �frica onde, certamente, as bichas seriam diferentes. Lá é tudo diferente, pensou. É o que se imagina quando estamos fartos de impostos e bichas, papéis e mais papéis, primeiro mundo.
"- uma atenção da Direcção-Geral e com o patrocínio duma autarquia". E acrescentou, confidente: "- ainda não o li mas a Lisete, da Tesouraria, já o leu e gostou"
Quando saía, o inesperado presente arrumado na pasta das facturas e das burocracias, o contribuinte nº xyz sentiu um pequeno remorso afligi-lo por não ter contado tudo sobre o que os papéis lhe perguntaram, de quem assim tão bem o tratara. E prometeu a si mesmo ler o raio do livro, "Xicuembo" era o estranho nome, afinal a Lisete lera e gostara...