terça-feira, março 15, 2005

Vidas reais

A mente conhece paixões que vão além do vício e tornam-se doença, desequilibrando o acto viril de viver num mundo acordado para padrões, fardas, máscaras, brutal e implacável globalização para os seus dissidentes.

Desde os seus tempos de pitinha e quando ele era um trintão da moda, ícone duma imagem de revolta à sociedade e sacerdote do “sex, drugs and rock & roll�, desde esses tempos de adolescente que ela tem uma paixão pelo cantor, o homem do ‘Satisfaction’ e da língua de fora, o bêbado e drogado e mulherengo mas também o artista que pensamos um dia encarnar, versão delas, pitas, e deles, mangussos.

Os anos passam e na tal realidade atrás falada como de acto viril de viver, olhos bem abertos e ‘numa de real’, há mais derrotas que o suportável por quem cresceu acreditando em sonhos, vivendo-os nas longas noites após uma ida ao tapete. Os anos passam por ela e ela quer continuar a ser eterna pitinha, ela vive à força o seu sonho, penetra nele dizendo com voz clara e enérgica “- estou aqui, quero jogar�. Pois dele, sonho, há tantos anos que aguarda à porta pela sua ternura, que nela chora por mantê-la aberta e só vê saírem as ilusões e entrarem algumas realidades amargas. A paixão vence, vence-a, domina-a, e ela penetra no mundo do sonho, cruza a porta e abandona os equilíbrios do tal acto viril de viver.

Pequenos sinais, um apreciar dum humor e duma ironia tão subtis que leva a que represente o seu drama e todos nós, então, então e ainda, com ela rimos da comédia que tão bem representa. Depois, e ainda antes da fase dos aeroportos que percorria de mala numa mão e o filho noutra, e a todos perguntava se o avião ‘dele’ já tinha chegado para a levar, das mensagens em código que estranhos lhe trazem, há um concerto em Vigo e ela mergulha de vez nesse sonho tão lindo e onde volta a ser pitinha, pede a lista de documentos para se casar e obtém-nos, e faz convites para a festa, delira esfusiante com as notícias nas tv’s e nas revistas de supermercado em que “a texana dum raio� perde a paciência com as infidelidades da velha carcaça, sexagenário que continua a portar-se como se tivesse dezoito anos e toda uma virilidade a provar. Ele está livre para ela, ele chama-a e ela não hesita mais.

Funcionária de carreira, escreve a cartinha a dizer adeus e prescinde de tudo pois vai ser muito rica, vai à embaixada dos states requerer vistos para ela e para o filhote, cinco anitos, e cujo pai não é, definitivamente, gémeo do outro embora também seja músico.
Para despistar a família e ganhar o tempo sem suspeita que lhe permitirá chegar à mansão dele e tocar a campainha ao resto da sua vida como sempre a sonhara, compra bilhetes de comboio para a Euro Disney, Paris, e toda a estratégia aborta por dedo denunciador do petiz que telefona aos avós dando conta da viagem iminente. Veio depois um mês que foi horrível, e eu fui lá visitá-la, ao hospital psiquiátrico. O seu desespero para tentar de lá sair disputando todos os centímetros duma realidade em que julgava já ter penetrado e todos lhe queriam tirar, amigos, enfermeiros, família, médicos, tudo estranhos que lhe saqueiam o seu sonho mais lindo e que teve ao alcance da mão… as caras e as atitudes, as palavras, das outras reclusas-doentes, aquele ambiente gélido onde o real é o que nós quisermos que seja pois é negro o das portas fechadas à chave e dos comprimidos e das injecções que tornam os olhos pesados, extinguem a fala e deixam o linguarejar que assusta quem não o sabe pronunciar. Houve mais momentos maus que vieram depois, espaçados no tempo, doridos para quem percebeu via oral e intravenosa que lhe roubaram, definitivamente, a fé no sonho de ser eternamente pitinha e casar com o seu príncipe encantado, único sucedâneo admissível e remate perfeito àquele romance de amor sonhado que viveu quase duas décadas. Nesses anos as rugas dele tornaram-se perfeitas e charmosas, as suas infidelidades meros sinais de que ele aguardava por ela, e ninguém é completamente perfeito.

Vidas reais. Teve diagnóstico de bi-polar, afinal aceitação académica dos momentos em que a nossa bússola da paixão aponta ao céu e sussurra-nos que podemos voar.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Brilhante !!! Só quem muito sonha consegue este retrato...A Paulinha concerteza agradece.

terça-feira, março 15, 2005 10:02:00 da tarde  

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