quarta-feira, março 02, 2005

Test-drive

Tendo a Escort recolhido a curros por falta de combatividade viária e para descobrir soluções para mistérios mecânicos inadiáveis, eis que por providência terrena vejo-me empossado em máquina modernaça e de mecânica para mim inovadora, provavelmente com o dobro da quilometragem que a mui querida e semper fidelis Escort, mas com luxos tecnológicos que muito me impressionaram.
Desde já destaco uma direcção assistida que caiu que nem ginjas no meu gosto, idade e preguiça, e um extraordinário comando electrónico de abertura das portas incorporado no chaveiro, maravilha que me deliciou a testar. Para além disto e que já não é pouco, embora da mesma fornada etária da minha irredutível bolsadora de óleo, o carro que o João Carapinha entregou a estas sábias mãos ainda lhes trouxe uma quase estreia, um motor da tão falada tecnologia diesel, modernismo de que já tinha ouvido falar em como proliferava a eito pelas ruas e estradas, mas que, algo relutante como sou em acolitar inovações tecnológicas que ainda considero insuficientemente testadas, ainda não tinha tirado prumo e peso para além dumas voltas com a vetusta 504 dum dos meus mecânicos militantes.
Mas antes das impressões de condução à máquina em causa (um Citroen ZX, não sei se conhecem), um pequeno resumo de como a jóia me veio cair em mãos – em boa hora pois soara o gongo para uma inadiável operação cirúrgica de alto risco às entranhas e juntas da dita e amada Escort, petit nom “Mulliner�.
O João, embora o negue com estranha veemência, é colega do José Castelo-Branco, é um marchand. Nem de arte sacra nem de Picassos ou Goyas, não é especializado nas cenas marítimas de Turner ou nas simetrias cromáticas de Vieira da Silva. De facto e de jure ele vende-os a todos e pelo mesmo reduzido preço, sem discriminar estilos ou fiar-se em cotações de galerias. Para ele um Van Gogh é tão consagrado para iluminar um recanto da sala do cliente como um Hooper, um Chichorro, um sei lá quem desde que o cheque tenha provisão suficiente.
Como em tudo, não há segredo no negócio. Algures em Barcelona o João tem um associado, o Pablo que é basco e bom rapaz e tem mão firme para o pincel. O computador traça na tela as linhas marginais e o Pablo e um brasuca que também está vocacionado para as artes plásticas entretêm-se a encher os contornos com sábias misturas de tons que reproduzem em bom rigor e à vista desarmada uns girassóis do Van Gogh mais depressa que o Mestre corta uma orelha.
Para viabilizar o negócio destas reproduções (assim são comercializadas, nada de más interpretações), as sessões de trabalho artístico são temáticas conforme a carteira de encomendas que o Carapinha e outros Joões por essa Europa fora e-mailam para Barcelona. Assim, se na terça-feira à noite enfileiram-se uma dúzia de 'Marilyn's' do Andy Wahrol, já na quarta não existem pruridos estéticos em esgalhar outra dúzia de Kokhoskas, Picassos, haja clientes que até Malangatanas de lá saiem… Mas o Pablo e o amigo brasileiro não se entusiasmam a assinar e é com orgulho legitimamente igual ao dos Mestres que rabiscam o seu verdadeiro nome baptismal, nada de embustes ao cliente ou falsificações ao espólio artístico mundial que enche os seus infindáveis catálogos.
Eu suspeito – não lhe digam por favor…, que, se em vez dos cinquenta euros habituais se oferecerem outros tantos ou mais alguns, o Pablo fechará um olho e estender-se-á no rabisco, e acrescentará o apelido mais famoso das artes plásticas... mas é mera suspeita falha de consistência, e por certa filha da euforia humorística que tive ao reencontrar o João, trinta e tal anos depois, convertido de hippy em marchand de arte… E os factos nem a tal induzem pois tenho em meu poder e graciosamente oferecido um lindíssimo Brotero com assinatura basca.
Ora bem, feito o marchand-intróito e voltando ao test-drive, como o Carapinha foi combater a crise das vendas para as ilhas e por semana e meia, face às minhas conhecidas e anunciadas dificuldades de locomoção, à nossa amizade, e, por certo, à sua curiosidade sobre que impressões de condução resultariam da minha mudança dum ‘Mulliner’ para a sua bomba tecnológica, coisa modernaça e a diesel locomovida e que restaria abandonada durante o exílio ilhéu, eis que na terça-feira levei-o ao aeroporto com meia tonelada de telas e um saquito com uma muda de roupa, tendo recebido durante a viagem vasto e pormenorizado manual de instruções de utilização e cuidados a ter.
À porta da garagem aérea disse-lhe “bái-bái� e ala para a estrada aquilatar qualidades apregoadas e o peso intrínseco da novidade em mãos. Embora seja embaraçadora verdade que enganei-me quatro vezes no caminho até apanhar vias conhecidas, de tais agruras não posso inculpar a viatura pelo que a tais pormenores deixo cair o meu envergonhado silêncio e apelo à vossa compreensiva cumplicidade para não me soltarem a pena a tais factos, pois a língua foi monologamente brejeira enquanto durou tal desnorte viário. Daqui a dez dias vou apressar-me a fazer contas da Via Verde com o João, antes que a factura chegue e ele se admire em como, para ir de Lisboa ao Ribatejo, tenha de ir a Loures duas vezes ou, um ‘até’ envergonhado…, à AE para Leiria.
Com tais voltas e impropérios a noite caiu mansamente sobre o desagradável ruído do motor diesel, e a iluminação do testado pareceu-me eficaz. Se as placas sinalizadoras não me foram legíveis q.b., há culpas em cartório "brisesco" e não no das lâmpadas e alcance das mesmas. Sei lá eu para onde vai a A8 ou a B15 ou o raio que os parta... custava-lhes assim tanto escreverem 'Almeirim'?
Um satisfaz nada relutante neste campo, iluminação, que já me estende para um feliz à parte que não posso esquivar-me a relatar: aquando da apreensiva transmissão de volante, o João, sorriso amarelo e tom preocupado, referiu que a iluminação do tablier nem sempre funcionava, cisma que - confidenciei para os botões que me abrigavam deste frio inclemente, eu atribuía mais a taras e manias próprias dum carro que tem um condutor marchand de réplicas do que a verdadeira avaria; em feliz realidade, na citada noite e desvarios rodoviários, o tablier iluminou-se qual árvore de natal, coisa que muito me agradou na solidão das insondáveis vias verdes que trilhei.
O motor diesel cumpre a sua função de forma pachorrenta e constante, sem oscilações de rotações acentuadas, e até permitiu que, em descida, ultrapassasse os dois camiões que me achincalharam na subida antecessora. Se não é um ‘Mulliner’, também tem vergonha na cara e, em descida, puxa de brios insuspeitos.
Quanto a conforto a opinião é positiva mas com naturais reservas: reconheço que saí da aventura rodoviária com as cruzes e os ossos do rabo mais bem tratados do que resultaria de tal saga na Escort, mas não me admiro muito pois há razões tecnológicas para aliçar a esse capitulo. É que - avisou-me preocupadamente o João Carapinha, o carro sub júdice tem um dos amortecedores de trás avariado… aos tais botões que impedem que a minha carne e ossos congelem confidenciei que a internada, a minha Escort-Mulliner, já de há muito que não dá utilidade a tais acessórios com as naturais consequências para o meu humor e conforto… portanto, nesse capítulo, outorgo-lhe um prudente satisfaz.
O seu equipamento pareceu-me completo e suficiente. Como a Escort, tem um espelho interior e dois exteriores, um rádio que trabalha mal e – luxo dos luxos…, um isqueiro operacional. Efectivamente há boas-novas na indústria automóvel e delas aqui deixo o meu testemunho.
Hoje o test-drive foi urbano pois tive de me deslocar na cidade para fazer pequenas maldades (boas novas telefónicas apontam como data de entrega da rejuvenescida Escort a próxima sexta-feira, o mais tardar). No âmbito de uma utilização exclusivamente urbana a sua direcção assistida é uma mais-valia de ouro, tendo abdicado de procurar espaços aptos a camiões TIR para parquear e, com sorriso rasgado de haste a haste dos meus óculos curiosos, até consegui estacionar o Citroen ZX num lugar deixado vago por uma Ford Transit dum rapaz cigano que mora aqui perto e eu conheço, e que, uma vez… essa conto depois, agora vou brincar com o telecomando electrónico das portas.
Fim do test-drive.


1 - Por razões óbvias os nomes de personagens referidos são ficcionados;
2 - Este post é dedicado aos irmãos Morgan, pais do carro com o mesmo nome e ícone duma indústria automóvel quixotesca que desapareceu; como exemplo classificativo, refiro que, embora a marca tenha surgido em finais do séc. XIX, só lá para os anos trinta do finado ‘vinte’ é que os manos se convenceram da bondade da solução de quatro rodas para um automóvel.
De facto o Morgan Three Whells só nessa altura deu lugar ao Four-Four que dura até à actualidade, quase intacto em soluções e design; com a particularidade de o seu chassis continuar a ser construído em madeira de alta qualidade e resistência, pois entenderão os técnicos da casa que ainda será cedo para uma mudança tão radical como será a para a idade do metal.
É verdade que o neto dum dos fundadores e actual patrão da marca, certamente já farto de ser gozado pelos seus colegas industriais do ramo aquando dos fins de tarde que eu imagino que partilharão nos club’s londrinos, no início do actual século decidiu modernizar a gama e acrescentar-lhe produto novo, moderno, com chassis high-tech, em alumínio moldado.
É o Aero 8, produto que se quis tão inovador que se assemelha a cruzamento bastardo dum ‘batmóvel’ com um dos clássicos Morgan… Mas lá pela casa não há preocupações com modas que são sempre olhadas como volúveis e passageiras, dado esperar-se uma vida útil ao neófito igual à do seu vetusto antecessor.
Longa vida aos sonhadores!

5 Comments:

Blogger th said...

eheheh...já agora vê se arranjas um "motor" mais rápido para aqui, pois o xicuembo parece movido a diesel, do antigamente! e compra um S. Cristovão para te ajudar nos "caminhos"...lol

quinta-feira, março 03, 2005 1:30:00 da manhã  
Blogger None said...

De carros nada sei, a não ser que gostaria de ter um Jaguar. Mas quero aqui deixar escrito, que anda aqui xicuembo, porque primeiro que o blog abra....já imagináste, nós à espera que apareçam as letras no monitor?

sexta-feira, março 04, 2005 2:34:00 da tarde  
Blogger mfc said...

O meu só tem um defeito: gasta combustível!

sexta-feira, março 04, 2005 5:06:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

E eu que vim à net alheia a pensar que iria aqui haver um post sobre o inédito do momento... beijo, IO.

sábado, março 05, 2005 6:23:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

E eu que vim à net alheia a pensar que iria aqui haver um post sobre o inédito do momento... beijo, IO.

sábado, março 05, 2005 6:24:00 da tarde  

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