quarta-feira, março 30, 2005

Reclusões & hambúrgueres

Quando os dias perdem-se do calendário e as horas medem-se pelas rotinas, é hora de almoço porque o carrinho tilinta no corredor ou é segunda-feira e não domingo porque os turnos mudam e as caras são outras, igual a rotina das altas com despedidas efusivas e mensagem de esperança para melhoras, das seringas que mergulham drogas no gotejar intravenoso que alimenta e, quando o tempo se reduz a um privado assim tão íntimo, sela ele reclusão ou chame-se-lhe tratamento, nesses dias há um momento em que o outro relógio soa, e seu bater no coração avisa que vem aí a hora das visitas, única ponte com o mundo pessoal que se perdeu nas paredes brancas sem tempo.

Numa vez em que fui hospitalizado por causa do ‘Crohn’ passei por esse sentimento, excesso de dias iguais que trouxeram a solidão em que até o jornal se distanciava da minha realidade e o mundo lá fora parecia-me muito distante. Beneficiei da minha Webina trabalhar no hospital e das suas visitas extra horários de tal, mas vinha sempre com a bata branca e, talvez por isso, nunca acedeu a ter-mos sexo na casa de banho do quarto. Dessa vez estive lá bastante tempo e, nos primeiros tempos do internamento fui alimentado exclusivamente a soro pois a “dieta zero� era (e julgo ainda ser) o primeiro tratamento a ministrar nas crises agudas da ‘doença de Crohn’. Eu não tinha fome para além da psicológica, do salivar pela mastigação quando via alimentos, pessoas a alimentarem-se à hora usual para tal mister.

Essa fome psicológica tinha acessos proporcionais com a publicidade na tv, que, na altura, propagandeava um novo hambúrguer da ‘Mc Donald’s’ em época de tardes e fins de tarde com transmissões apinhadas de jogos de futebol em final dum campeonato qualquer, daqueles importantes e que mobilizam as famílias a encher as tolerantes enfermarias com televisores. Não recordo bem de que campeonato se tratava mas sei que o pitéu tinha foto a cores, rezava a publicidade que era de comer e chorar por mais, um exclusivo nacional a terminar assim que, na bola, soasse o último apito. Um hambúrguer com fatias de presunto adiantado como especialmente saboroso, mais a carne e o queijo derretido, a alface, os molhos, o pão fofo, a fotografia era irresistível e a ‘fome’ consumia-me enquanto arrastava corredor acima corredor abaixo o andor com o saco de soro insonso. Eu já não aguentava mais, urgia agir.

Ora bem, o catering é feito com carrinhos onde as bandejas vêem cheias e à qual regressam mais tarde, muitas no mesmo estado de virgindade ao peixe cozido ou à perna de frango com arroz. E o papo-seco. Assim, na viagem de 'rame-rame' pelo corredor, para lá, seleccionei alvo acessível no carrinho estacionado à porta das ditas enfermarias, dentro do muito rejeitado pelos colegas doentes. Ao fundo, em pausa ociosa olhei o movimento na zona dos elevadores, ajustei o gotejar do tubo e calculei o tempo para regresso enquanto a funcionária estaria dentro dos quartos. O papo-seco voou para o bolso do roupão como previsto.

Comi metade, que maravilha! Em cada trincadela no pão seco sentia os molhos a escorrerem-me no queixo, gulosos, carinhosas dentadas que estalavam o presunto frito, sentia o sabor do queijo derretido e da carne… Confesso que foi um óptimo hambúrguer e dele me recordo amiudado quando entro num ‘Mac’ e lembro-me do papo-seco gamado, pronto! está confessado como já desejei mais a fast-food que qualquer outro prato equilibradamente saudável.