sexta-feira, março 25, 2005

Ganhou o '7'!

Na folha roubada ao doloroso encher do caderno de matemática com hesitantes contas em azul e zangados traços em vermelho, aproveitando a certeza que as linhas do quadriculado trazem às distâncias entre-eixos e permitem acertar as linhas do design, os bólides são traçados com deleite, linhas empolgadamente desportivas, magníficas, acutilantemente aerodinâmicas. Uma multidão de faróis na grelha, apelativos autocolantes e o número desenhado em destaque dão-lhes um look desportivo, e as jantes ‘especiais’ o toque final e arrasador para vencerem nas pistas em que irão correr os dois metros e meio do corredor.

Uns, copiam os bólides da época e que as fotografias nos jornais revelam para encantar, Porsches e Ferraris, Ford GT-40, e também nascem as linhas que a livre inspiração dita, fazendo nascer máquinas únicas e fatais para os adversários, até um mutuante que transforma o pacato carro do pai numa super bomba. No chão e à volta da mesa da sala, disputam corridas em derrapagens que os dedos provocam com audácia temerária, chocam contra as barreiras do circuito desenhado pelos livros de banda desenhada alinhados com os policiais que o pai tem na casa-de-banho, e até os escolares ajudam ao construir do Grande Prémio.

O cenário, familiar, íntimo e seguro como é, isso tudo e muito mais, a família e o lar, permitem soltar o voo sem barreiras dos sonhos nos traços que enchem a folha de quadriculado, deitado no chão e sentindo o agradável fresco do parquet que o coco poliu nas pernas nuas. A esferográfica acrescenta os últimos pormenores, corrige um traço ou outro naquela frota de luxo, grelha de partida única porque tão exclusiva como o poderão ser os sonhos dum puto que deles e neles vive, ao volante a infindável imaginação. Da criatividade dos traços nascem os brinquedos únicos que o brincador para si fabrica, cria.

A mãe é cúmplice e indulgente, e permite a ocupação do sempre parco espaço da flat com a brincadeira do Grande Prémio, tal como tantas vezes permitiu que, na varanda das traseiras ou nas escadas do prédio, sala ou até na cozinha enquanto o bolo perfuma o ambiente e promete delícias sempre que a porta do forno é aberta para que o palito sondador aquilate a cozedura do prazer guloso, em toda a casa e adjacências exércitos se formassem e dizimassem, podiam à segunda-feira à tarde os índios enfrentar os cow-boys em astuciosas emboscadas que enchiam prateleiras e móveis, recantos, de atiradores furtivos, mas haveria uma manhã em que seria dia de recriar as batalhas que se liam em sofreguidão sonhadora nas revistas em quadradinhos “Guerra�, “Ene 3�, “Major Alvega�.

Mas nesta tarde o cheiro a gasolina e a borracha queimada inundam o ambiente-cenário em que o dia feliz flutua, dos lábios soam os ‘vrum-vrums’ que a garganta do sonho solta, e até o mainato espreita da cozinha e sorri ao desenrolar da corrida que o puto alonga e relata em voz emocionada, contornando móveis e cadeiras, a meta ao meio da longa recta que vai da porta da sala até à perigosa curva junto à porta das escadas, onde perigosos ventos sob ela penetram e, em dramáticas vezes, fazem capotar os carros cuidadosamente recortados ao papel onde nasceram para a glória

Agora o Ferrari P4 vai destacado quase dois livros e meio, atrás um Porsche que foi prejudicado certamente pelo traço que tremeu ao desenhar a roda de trás e fê-la mais ‘quadrada’ que o aconselhável, e é penalizado pelo dedo do seu insatisfeito criador que o tschova, impelindo-o mais displicente e moderado que ao projectar aqueles que o gosto pela obra elegeu como favoritos, os mais bonitos e naturalmente especiais. Mas nas curvas desenhadas geometricamente, alinhadas com os calhamaços dos livros do pai que se espreitam em segredo à procura de palavras proibidas, - fascinantes! vão agora lado a lado o Ferrari e um sem origem genética conhecida em enciclopédias e anais, pois de inspiração livre foi a sua lavra, o nº 7, linhas esguias e traçadas como as do carro de corrida perfeito, o mais bonito do mundo e fatal para os derrotados adversários. A emoção sobe e entram na recta final, a meta à vista (mais três empurrões e estão lá… ou dois chegam? qual ganhará?), o apelo da consciência tenta tornar os dedos justos no dosear igual da força motriz, projectando os carros de papel pelo chão, voando para a glória que as paredes do corredor contemplam, mudas testemunhas e complacentes cúmplices.

(Quem ganhará? quarenta anos depois tenho em mim que ganhou o ‘7’, ganhei este texto, ganhei-me a mim próprio; ganhou o ‘7’ – traço-brinquedo feito com amor, quer nas linhas ora nas letras, sempre eu, puto-mufana)