domingo, fevereiro 27, 2005

O Simca Aronde azul celeste

Teria os meus doze, treze anos, quando pela primeira vez e por alguns gloriosos metros ‘conduzi’ sozinho um automóvel. Poucos metros e com embaraçoso embate numa parede inconvenientemente próxima, mas sozinho.
Claro que se tratava do carro do meu pai, um Simca Aronde azul celeste, cor dum céu que, então, iluminava os meus dias da Avenida de Angola, na falada Mafalala fronteira ao alcatrão da avenida e onde algumas ilhas de betão nasceram nos anos sessenta. No meu caso morava nos prédios fronteiros à cervejaria e lupanar Vasco da Gama e duma paragem de machimbombos que vinham da cidade até ao aeroporto e serviam, deficientemente, um bairro densamente povoado e com metade da sua população empregada na cidade de cimento ou na sua periferia industrial, cais, tudo destinos afastados e carentes dum serviço público de autocarros que era, no seu máximo, igual ao que servia a praia da Polana, zona do Miramar.
O prédio onde morava ficaria a meia distância entre o Largo Albasini e o Bairro Indígena, este assim crismado oficialmente talvez porque nunca se previu que um branco, um metropolitano, lá fosse residir – e eu não me recordo de nenhum. É um conjunto de moradias modestas, todas de projecto igual e todas carentes de acabamentos, dispostas em semicírculo e, inegavelmente, um progresso para os sortudos que as habitavam relativamente às palhotas que nos rodeavam, mas o semi-círculo era tão pequeno que não conseguia ocultar o mar dessas mesmas palhotas com paredes em caniço e forro em chapa ondulada, algumas com um quintalzito vedado a caniço, formando os seus contornos territoriais um labirinto de becos que não era fácil memorizar mesmo para quem morava nas cercanias.
Foi para o segundo andar dum prédio dessa Av. de Angola que os meus pais foram viver quando chegamos a Lourenço Marques, e quem vem do Alto-Maé e chegando à tal zona do Vasco da Gama, será no seu lado oposto o primeiro dum conjunto de quatro germinados, todos com um pequeno pátio cimentado em frente para estacionamento dos moradores.
No vão da escada para os andares superiores existe um lugar de garagem, portanto coberto mas não isolado do tal pátio, onde o meu pai guardava o carro e, ao fim-de-semana, comecei a oferecer-me para lavá-lo. Mas a garagem era um pouco apertada para manobras de baldes e mangueirada e aventurei-me. Aos solavancos com a embraiagem, certamente a deixar o motor ir-se abaixo, trouxe o carro para o amplo pátio exterior. Como não correu assim muito mal e, muito logicamente, para a frente ainda será mais fácil, com uma aceleração mais forte pensando que assim o motor não se finará tão facilmente, solto a embraiagem num repente pois era a primeira vez que pisava os pedais com o motor a trabalhar e nunca entendera o que era um ‘ponto de embraiagem’.
O azar é que, lá ao fundo e por baixo do vão do primeiro lance de escadas, estava a parede onde me estampei após avançar uns gloriosos quatro ou cinco metros como se estivesse numa largada de dragster’s. Foi tudo tão rápido que o cérebro nem se lembrou de dar ordem aos pés para começarem a tratar de trocar de pedais, e por certo emocionante em todos os seus centímetros… As lavagens foram interrompidas mas comecei a ter as minhas primeiras lições privadas de condução automóvel com o meu pai. De vez em quando, em estradas isoladas e sem trânsito e sem polícia, lá me eram concedidos uns quilómetros em que a banda sonora só dava regras e recomendações. Eu dizia que sim a tudo e nem ouvia dois terços, pois o nervoso era tanto que quase ameaçava o imenso prazer que sentia em ter as mãos no volante, do domínio do carro.
Foi nesse Simca Arondeque o meu pai teve um acidente na Avenida do Trabalho e onde saiu magoado nas costelas – os cintos de segurança nem existiam… Nada de especialmente grave mas recordo-me de, no final da tarde e vindo das aulas saber do acidente, do receio que tive quando entrei no quarto para o ver, deitado e com o peito ligado. Ou logo no dia seguinte ou pouco depois o meu pai foi à oficina onde o carro estava para recompor a sua maltratada frente e fui com ele, ver o carro. Estava bastante pior tratado do que eu o deixara na batida que meteu o para choques para dentro e partiu um farol. A chapa torcida era muita, o que levou a que fosse todo pintado senão ficaria em dois tons de cor.
Esse carro durou anos nas mãos do meu pai. Antes, não só os carros eram mais estimados que hoje e não eram olhados da mesma forma consumista em que se o Fiat Uno deixar de ser produzido os seus proprietários começam todos a pensar em comprar um Punto. Além de que o dinheiro era menos e a compra dum carro, mesmo que em segunda mão, estava bem longe das facilidades de hoje em que o bancos divertem-se com esse negócio, nós pagamos e queremos continuar a pagar, e para os que não podem com tanto pagar há os carros a cem contos que já se viram por aí à beira das estradas e que não acabaram certamente. Antes um carro era um bem muito mais inacessível do que hoje, por isso uma riqueza maior para o seu possuidor que o estimava na justa proporção.
O Simca tinha 'mudanças ao volante', o que então era habitual. Na minha família havia e houve mais ou menos na mesma época 'bocas-de-sapo', Mercedes 180 como os dos velhos táxis e também dos 190 com uma cauda que pareciam asas, e todos com a alavanca na coluna de direcção. Era ronceiro, já desactualizado com o high tech que então circulava nas ruas de LM, com o pelotão japonês a dar os primeiros passos e boas máquinas que iam da Europa. O Aronde tinha várias versões das quais a mais cobiçada era a Monthlery, com motor vitaminado, um volante desportivo e faixas brancas nos pneus, uma decoração agressiva que contrastava com o ar de carro de pai-de-família que tinham o Étoile e o Elisée. O do meu pai era o Étoile, um pacato ao lado do qual a minha Escort não se envergonharia. Em verdade vos digo que desconfio que ela não é capaz dum arranque tão fulgurante como o que o Simca teve, no tal prédio da avenida de Angola… e espero bem que não o seja, pois a Carla já faz treze este ano…
Por falar em Carla, esta noite foi a estreia da peça ‘Espanta pardais’ pelo grupo de teatro Narizes Perfeitos, formado no seio da Banda Marcial de Almeirim e com trabalho de direcção de actores e de encenação da Fernanda Narciso. Contrariando o nervosinho miúdo anterior correu optimamente e a Carla esteve bem (é a ‘Maria Primavera’), e até um corte de energia caiu no bom goto pois repetiram a cena e quem ficou a ganhar foram os espectadores. Há malta nova com sede de actividades culturais, alguns com uma entrega que é filha do gosto por neles participarem, em contraponto às rotinas padronizadas que lhes asfixiam a juventude. A sala estava cheia e não eram todos pais e irmãos dos actores, foi um sucesso. No final do ano passado estrearam a outra peça que têm em cena, o ‘Olha, Olha’ e vão começar a preparar um ‘Peter Pan’ para a inauguração do reabilitado cine-teatro local, prevista para Outubro.
Um viva ao teatro amador, berço cultural que sobrevive em terras interiores áridas de acontecimentos que nunca saiem das grandes cidades, alegadamente ‘por falta de mercado-alvo’.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E VIVA O TEATRO, SEMPRE!!
e os jovens a fazê-lo, também!!
e este texto, a garantir-nos que haverá matéria para outro livro!!
beijo,
muf'

domingo, fevereiro 27, 2005 6:05:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home