quarta-feira, fevereiro 16, 2005

O Ramalho barbeiro

O Ramalho era um compincha e era barbeiro, e um dos maiores castiços que o passado recente daqui, lezíria, traz à liça da memória editável.
Magro, esquelético e com uns óculos à antiga, sempre de casaco com padrão em zadrês, não era por nenhuma destes sinais que o Ramalho respondia. Na testa faltava-lhe um bom bocado de osso e, por exemplo quando ria e as rugas se formavam esticando a pele, 'via-se' - ou julgavasse ver.... o cérebro do Ramalho a mexer.
Tal ausência de normal osso era devida ao facto de o Ramalho morar na Quinta do Mascarenhas e já quase em Alpiarça, embebedar-se em Almeirim e a sua mota ter encontrado em certa parte de tal percurso a placa que anuncia a vila, Almeirim. 'Eirim', depois do Ramalho chocar com ela, porque o 'Alm' foi a dura cabeça do barbeiro que o levou à frente.
Bem, o Ramalho, jogador inveterado e autência ciência viva da arte de seduzir falar com uma máquina, acarinhando-a em ternuras mil e muitos afagos de cumplicidade, premiados por vez em prémios sucessivos e que ajudavam a gerar a lenda do Ramalho, enquanto o braço fazia rolar a combinação dos frutos, os dedos selecccionando as casas a imobilizar na aposta.
Como é óbvio, andava sempre teso, bêbado e feliz.
A sua felicidade era tão grande que um dia a EDP aborreceu-se e cortou-lhe a luz. O que em nada incomodou o Ramalho pois a cadeira dos cortes e das barbas era junto à porta, esta junto a um semáforo, neste um candeiro que dava de borla aquilo que o contador amortalhado na parede antes cronometrava para facturar. Bem, e a terminar... um dia um electricista foi lá cortar o cabelo, as conversas são como as cerejas e saiu de lá com o Ramalho todo satisfeito com umas massas inesperadas: vendeu-lhe o contador.
De certa vez, andavámos numa de espiritismos (e tenho duas ou três boas para contar...), nessa barbearia do Ramalho, que era um cubículo, e pelas tantas da manhã, a 'mesa' feita sobre essa mesma cadeira de dentista/barbeiro à antiga, o Ramalho ralhou connosco por mais respeito pois jurava que a alma da sua prima estava presente, ela que tinha um nome engraçado que agora não recordo e tinha morrido, uns vinte ou trinta anos atrás, afogada numa lagoa em Coruche, invocada pela meia garrafa de ginja que já bebera. Pois o Ramalho era fino, e na cerveja quando a ela recorria era sempre em minis e naturais.
Um tipo fino, este Ramalho. Estendi-me nisto mas o Ramalho era mesmo coisa fina...
Há anos que não sei dele, as últimas apontavam para estar a viver em Salvaterra de Magos. Talvez ainda nos encontremos, ele com os seus olhos malandros e risonho, elegante no seu lacinho que encimava o cabide que o seu esqueleto formava adornado com o fato coçado, o buraco na testa a rir-se para nós, nós a olhar para o buraco e a disfarçar, e o Ramalho a rir-se ainda mais...
Também é do tempo dos bingos clandestinos no clube da terra, das rusgas e das mil histórias que se ouvem... o que saltou pela janela, o que abriu a porta e todos os que foram multados após visita ao tribunal da comarca. Incluindo o velhote que todas as noites ia lá beber bagaços e ler o jornal da casa com uma lupa, tão cego para jogar ao bingo que, já os outros sonhariam com o acumulado, ainda ele estaria a jogar para linha.
Levou coima e taxa de justiça de igual valor aos outros, e penso que os jornais diários terão ganho novo cliente. Escreve-se com lupa por linhas tortas, eis o trocadilho com que hoje termino.