quarta-feira, fevereiro 16, 2005

O póker de dados

Jogava-se num cinzeiro, daqueles redondos e em vidro grosso onde as pedras saltitavam com o ruído de fundo que soava mesa a mesa, em serões onde o jogo do póker de dados era senhor constante e omnipresente.
Os ases que todos procuravam, a alegria de uma sequência de mão, os dezes que eram desprezados e tantas vezes inclinavam a conta final...
O póker de dados nos cafés, o tlim-tlim no cinzeiro que era mágico quando só uma pedra saltitava procurando o final duma jogada que poderia ser perfeita, a marcação dos pontos nas folhinhas policopiadas, com o sucesso na clientela substituídas pelo dono do café por formais feitas tipografia, com publicidade à casa ou patrocínio duma cervejeira.
Aqui, lezíria ribatejana, nos anos em que o Ramiro tinha um restaurante que ainda era mais cervejaria, ou nos gloriosos tempos das noites quentes no 'Janeiro', veterano de Moçambique onde esteve vinte anos desaparecido. Conta a lenda que foi de motorizada para Santarém com um embrulho de roupa ao colo, estacionou na velha ponte e deixou em cima do banco a que levava, apanhou o comboio para Lisboa e lá o barco para �frica.
Com a descolonização e vinte anos depois apareceu em Almeirim onde já ninguém se lembrava dele, pendurou uma carcaça de cabeça de hipopótamo por cima do balcão da cervejaria que abriu para governar a vida e, rezam as minhas memórias e não a lenda, bastas madrugadas as portas eram encerradas, simbólicamente, lá pelas cinco da manhã. Vinhamos todos cá fora fumar um cigarro e olhar a inabitual estética da porta fechada, cumprimentar aqueles madrugadores que se levantavam cedo por rigores, e declarávamos a final da beata o bar re-aberto.
Certa noite o 'Janeiro' até jurou que tinha na arca umas costeletas de hipopótamo, lá as fritamos e comemos como tal na ressaca de noites onde o saltitar das pedras no cinzeiro fazia, em momentos perfeitos, abrir jogo marcando sessenta a ases quando tiravam-se cinco noves negros de mão.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Está encontrado o Jorge Amado da lezíria! Tens as castiças das personagens, que tal começar a pensar no argumento para um novo livro? _ gostei, IO.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005 3:52:00 da tarde  

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