sábado, fevereiro 19, 2005

Crónicas do tempo

Sento-me a ler a revista, a capa em cores garridas tão do gosto da época. Nela um tipo com ar de metropolitano, matreco, muito clarinho e com umas entradas que o cabelo penteado para trás ainda mais envelhecem; canta fados e chama-se Carlos do Carmo.
Logo nas primeiras folhas a notícia em como o cinto de segurança vai ser em breve obrigatório com multa a quinhentos escudos, passo as páginas e vou olhando para os anúncios à procura de alguma novidade, uma entrevista ao brasileiro treinador de futebol que dizem ter mau feitio, o Iulstrich, que deixo para ler mais tarde.
Nas páginas de noticiário internacional uma pausa mais alargada, pois há que ler pelo menos parte da notícia para se ter uma ideia mínima do mundo e não fazer figura de urso no café. Muito Vietname, em rodapé e com foto Neruda.
Depois o sumo da edição, ontem como hoje. O salivar é o mesmo e tem de ser abastecido. Uma história rocambolesca com o fisco, este a executar um morto em conjunto com três imperiosas citações para a prática de actos processuais e com prazos fixado, e ele mortinho da Silva porque o deixassem em paz no seu eterno descanso, ámen. Para alegrar e com chamada em subtítulo, o filho pagou a dívida antes que alguém se lembrasse de penhorar o caixão, mas, mesmo depois disso, ainda houve duas notificações pessoais ao falecido. Ora se estes que vão entrar agora para ministros lêem isto, então é que vai ser bonito… Os mortos que paguem a crise!
A páginas trinta e quatro o tal Carlos do Carmo lá confessa na primeira pessoa que: “- em todos os países em evolução, como é o caso do nosso, há cantores contestatários. Eu não sou nem estou nessa fila de cantores, mas gosto de cantar coisas que interessem as pessoas. O meu tema privilegiado, o meu tema base, é o amor nas suas mais variadas facetas�. Duas folhas depois vem esta pérola: “O homem que não gosta de festivais, o cantor que não é contestatário mas gosta de cantar o amor, o fadista de luxo da plateia de Lourenço Marques, o filho da fadista Lucília do Carmo, que nunca tinha actuado em Moçambique, mas que vende todos os seus discos em Moçambique, o artista que se considera bem pago e que não sabe se ganha mais ou menos do que os outros “- nunca lhes perguntei� – entende a política como Columbano: uma porca com muitas tetas e muitos leitõezinhos. E tem uma reprodução da célebre gravura em casa�. Assina Ribeiro Pacheco, e a crónica tem o patrocínio gráfico à última folha da “Casa Bayly�.
Logo após uma reportagem sobre um sacana de um bife, o Sr. Smith, feito com o não menos sacana do administrador, que quer vedar o acesso a uma praia que em fotos mostra ser linda, para ser só utilizada por eles, bifes. Papeladas esgrimidas a mais, carimbos a mais, esquemas a mais, olhos abertos para além do umbigo a menos. Trata-se da Ponta Mamoli, junto à Ponta do Ouro, e não a conheci.
Eis que surge a nata da revista, a reportagem sobre o vizinho grande prémio de fórmula Um, Kyalami, �frica do Sul. Ganhou um americano com nome latino e ar de cantor de bôite, Mário Andretti, num Ferrari. Numa das fotos de interior o Emerson Fittipaldi, com aquelas patilhas que o fazem confundir-se com um campino, é melhor identificado como ‘o brasileiro’. Há três anos atrás trabalhava como mecânico durante a semana para custear o seu fim-de-semana, sempre vivido da forma mais rápida que lhe era possível. Olhar para os nomes que aparecem na classificação geral, as marcas e os modelos, é uma pequena viagem à memória vrum-vrum e isso é agradável.
A página permanece aberta com as fotos de Cassius Clay (depois, em letras pequenas, lá vem a explicação de ter mudado oficialmente o seu nome para Muhamed Ali) a ser derrubado por Joe Frazier, o momento em que o seu corpo parece começar a elevar-se rumo ao espaço, o corpo do agressor com os músculos contraídos pela força empregue. Noutra vê-se já a cair no tapete, mas lê-se que a desforra já está mais ou menos combinada, uma sessão de porrada que promete ser monumental a troco de uma fortuna a cada um deles.
Um anúncio da “Albatroz – Viagens e Turismo� prende-me atenções e faz saltitarem números. Por mil e novecentos escudos (quatro multas por falta de cinto…), duas semanas numa residencial de Lisboa, Porto ou Funchal, ainda com direito a uma excursão. Um dos problemas deste país sempre foi o valor exagerado das multas, porque no resto sempre existiu uma qualidade de vida consumista apreciável, haverá comentário mais natural?
Uma das páginas de que sou fiel adepto é a onde vêem as notícias de cinema, com o ‘Guia do espectador’, o nome do filme e a sala onde passa, uma classificação de 0 a 9 dada pela redacção da revista. Não só me guio por ele para lançar olho interessado ao que pensam de filmes que ainda não fui ver, como também sempre gostei de comparar a minha opinião com a dos reputados críticos, sejam-no por profissão ou dom.
Nessa semana foram todos, sem excepção, ver ao S. Gabriel “A volta ao mundo em 80 dias�, com pontuação cerrada entre margens 4 e 6. No extremo, reparo que, no Gil Vicente, corre um “Esse belíssimo Novembro� a que nenhum foi assistir, e eu não me lembro bem do outro e nada deste. Quanto ao “A volta…� tenho um bichinho a dizer-me que terá sido com o Rex Harrison e o David Niven, mas como andava convencido de que a Manhiça era depois do Xai-Xai e para os lados de Inhambane já é de esperar tudo deste banco de dados a precisarem de upgrade. Ainda no S.Gabriel o “No calor da noite� recebe elevada frequência crítica e pontuação de média mais alta, tal como no Manuel Rodrigues “A mulher infiel�, tema que atraiu também elevada percentagem de classificações.
Do rol ainda constam uma comédia do Jerry Lewys no Scala, um filme chamado “Sabata�, uma cowboyada com todo o aspecto de ser com pinta que está no Gil Vicente (tem um 3 e dois 2, dá para ir ver…), e no Império corre outra com um título que fala: “A morte vem a cavalo�. Quem lá foi dar-lhe um 4 foi o Miguéis Lopes Jr,
No Cine-Clube passa um Losey, Joseph,: “A fera adormecida�. Quatro setes e um seis, as mais altas da semana. Do Miguéis Lopes Jr., do Mota Lopes, Ricardo Rangel e Lourenço de Carvalho. A terminar a ronda, vejo que no cinema Infante passa um filme português, “O destino marca a hora�, e é de passar ao largo pois é filme para pais e não para filhos.
Bem, logo na página seguinte e a encimá-la, foto e pequena notícia com título de “A polícia no meio�, com imagem a fazer jus. Nela, os fardados e de escudo enfrentando sem sucesso visível manifestantes. Nas letras, conta-se que a extrema-direita é que começou, mas a acção policial não agradou foi à outra, a do extremo esquerdo, assim reza a notícia. Em Paris e nas vizinhanças do palácio dos desportos, a malta de lá precavida com capacetes bastões e máscaras anti-gás, o impensável na realidade em que se lê a notícia na revista, lá consagrada como real mas tão distante dessa realidade onde ela, condensada e nas páginas interiores, é lida. São ecos mesmo assim bem-vindos, há mais mundo para além desta lassidão que coze lentamente sob o sol africano.
Foto da mulher do governador com as misses, e um anúncio da “Cave� a anunciar os “The Marilin Dancer’s�, com as vozes de Américo Carlos e Farri, “… e ainda a cantadeira Isabel Cruz e a expressão máxima do music-hall brasileiro Ari Lopes e Glória Norton. Orquestra privativa – Cave Quarteto. Reservas pelo Telef. 23352, maiores de 21 anos�. Ora bolas…
Logo ao lado a concorrência, o “Tamila�, “o mais alegre e acolhedor dancing de Lourenço Marques� nas palavras do anúncio, que promete também atracções internacionais: Um ‘sensacional ballet famengo’ Carlos de Falla, e a estrela da rádio e tv espanhola Shony Parga. Além disso anuncia uma striper alemã, Beverley Hill, e a música de dança é dada pelo “Latin Soul Quartet�, sendo a direcção musical de Angel peiró e o telefone o 23361.
Os olhos perdem-se nos anúncios enquanto a revista vai chegando ao fim, desde as latas de Nescafé que oferecem copos de whisky ao das Organizações Princesa, orgulhosa das suas pastelarias e aparentados, Ateneia, Safari e Djambu, a juntar à casa-mãe. Na última página e antes dum brilhante anúncio a cores aos meus cigarros favoritos, o maço vermelho e branco dos “Palmar� que diz na sua publicidade “É um cigarro com o gosto vigoroso do tabaco puro, dourado e pleno de aroma. Tabaco cheio de sol e de vida. Genuíno ‘broadleaf’ para sua satisfação total�, texto para ser recordado às pudicas tabaqueiras actuais, o artigo de Rui Cartaxana então o sub-ditector da revista, no caso em loa cheia de prudências à primavera marcelista e muito principalmente à ala renovadora da Assembleia Nacional. Sá Carneiro, Francisco Balsemão e Barreto Lara são citados, que termina assim após transcrever sucintamente o programna da ala liberal:
"Haverá alguém que se recuse a subscrever um programa destes? Mas poderá também ser-se mais genérico?
Uma coisa me parece certa: é que se avançou um passo nos costumes políticos portugueses"

……………………………..
Revista “Tempo� nº 27, de 21 de Março de 1971 (7$50 no distrito de Lourenço Marques, 10$00 nos outros distritos)

2 Comments:

Blogger th said...

Em 1º lugar os dados que encontreiàcerca do filme "A volta ao mundo em 80 dias".

Realizador: Michael EmAndersonActores:
» David Niven
» Finlay Currie
» Cantinflas
» John Gielgud
Ano: 1956
Duração: 175 minutos
Género: Aventura
País de Origem: EUA

Depois acho que nos deu um saudosismo aos dois ou é apenas um passar de testemunho, pois no meu lá recordo coisas do passado...um beijo amigo!

sábado, fevereiro 19, 2005 1:14:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

GOSTEI, MESMO!!! _ muf'

sábado, fevereiro 19, 2005 2:55:00 da tarde  

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