segunda-feira, janeiro 03, 2005

Um carrinho no bolso

Amanhã de manhã tenho um daqueles serviços que ninguém gosta, excepto o que tem a haver mas ainda não viu nada. Será feito. Não gosto, mas será feito. Está a hora aprazada com o 'dim-dom-dim', o camião que vem vazio e deve voltar cheio vem do norte de madrugada e eu estarei à espera dele, eu na minha farda discreta, o fato dos funerais, alguém noutra com botões prateados e distintivo visível.
Estes casos merecem-me uma preparação mais cuidada, não a nível de papéis pois neles a rotina imuniza, mas cá dentro, eu. Sei a hora e data já há uma semana e, como sempre, os dias passam nas milhentas rotinas, blogasse, trabalhasse, faz-se tudo para não pensar nas caras sádicas dos curiosos que sempre se juntam, faz-se por esquecer o acto de que serei a face da Lei, legalização das alíneas e artigos cuja aplicação será coersiva e tentará introduzir um grão de equilíbrio nas depauperadas relações entre o credor desgastado e o devedor relapso, faço isso tudo mas nunca consigo interiorizar totalmente que o meu papel é o de pequena peça numa máquina, lenta, mas objectiva e socialmente útil. Preparo-me psicologicamente, reforço mentalmente a argumentação assertiva, visto a farda que menos gosto, a que diz "- tem de ser e vamos começar já" e que, a final, deixa-me pouco mais rico em €uros e muito mais pobre em auto-estima.
Mentalmente revejo a argumentação clássica, "ele" arranjou o problema e teve mais que tempo para resolvê-lo doutra forma, há que ajudar a travar estatísticas desagradáveis de ler, até vou buscar o esfarrapado argumento de que a Lei tem de ser cumprida e alguém terá de a impor quando ela não é acatada, mas nenhum me deixa a olhar a manhã de amanhã como uma manhã a recordar em blogue, vinte anos depois.
Hoje, pensei em levar um carrinho no bolso do sobretudo, pega que possa agarrar quando os olhos dele lerem nos meus que os meus lábios não mentem quando dizem "- tem de ser e vamos começar já"; uma evasão ao momento, ficará o autómato preenchendo o rol, assinando e preenchendo, mais assinaturas, cá dentro uma parte lembrar-se-á do carrinho e os dedos toca-lo-ão de leve, sentirão nos seus contornos a outra vida, o mundo onde esse homem que assina e preenche teve carrinhos, vida diversa, mais sã, mais feliz.
Não gosto desta forma de ganhar a vida, não gosto, mas... "- tem de ser, e...".

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Só posso dizer que te compreendo, mas quem tem de se "DESCULPAR" é quem tem culpa...th

terça-feira, janeiro 04, 2005 9:36:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ao ler este artigo lembrei-me dum "menino" que dizia já por dá cá aquela palha, "É A VIDA...". Pois, a vida por vezes não é tanto como gostaríamos, mas, é a vida... Fica bem e boa sorte. Paraquedista

terça-feira, janeiro 04, 2005 1:05:00 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

Tenho a informar que, felizmente, o camião regressou com a melhor carga possível: só levou dinheiro, o que queria. Resolvido.

quarta-feira, janeiro 05, 2005 11:20:00 da manhã  

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