terça-feira, janeiro 04, 2005

O berlinde que fugiu

Jogava-se às três covinhas. O Anacleto, que tinha uma leiteira daquelas todas brancas e temíveis, amealhara pecúlio que fazia perigar as reservas aos bolsos dos calções coçados pelos muros onde, também, se jogava uma variante do berlinde que passava pelo atirá-lo contra ele, e no retorno cair sobre o adversário, ‘abafando-o’, i.e., metendo-o ao bolso com sorriso de orelha a orelha.
Ora era o que o Anacleto fazia, e, de covinha em covinha e com uma ‘caga’ de primeira, dizimava azuis e verdes, aos olhos do Jorge desapareceu-lhe o seu berlinde mais bonito que voou após um ‘tiro’ de mais de um metro, com a incrível sorte que o puto tinha, e a tarde corria-lhe em feição daquelas de criar lenda e, por largos tempos, ser o dono do passeio quando de berlindes se falasse.
No outro lado, sonolento, um velho sentado à sombra da cantina olha-os enquanto enxota as moscas que vêm do sol inclemente daquela hora, incómodas no seu zumbido, e no terreiro o dia mergulhava na perfeição da glória de ganhar ou de saber perder com desforra aprazada. Eram quatro. Além do Anacleto e do Jorge, o Betinho e o Nelito compunham o movimento que se via enquanto as três covinhas se corriam no incessante prazer de brincar, forma saudável de se crescer e muito principalmente para o Anacleto que acaba de levar o Nelito caixa d’óculos à desistência.
As suas gargalhadas respondem aos gritos de protesto dos espoliados que procuram inventar novas regras que travem a leiteira que o Anacleto exibe, pois da precisão da sua pontaria nessa tarde não havia registo de façanha igual, e nisso todos concordavam divergindo a seguir pela lógica de quem vence ou de quem está a dar os primeiros passos para futuros resfriados ao strip-poker. A outra leiteira, o berlinde, já fora remetido aos seus bolsos superlotados via um misto de argumentação de ‘armas iguais’ e ameaças declaradas de não jogar mais, mas o seu sucedâneo onde os três contribuintes de elite depositaram esperanças, revelou serem estas muito mais vãs do que seria esperado em mentes avisadas, pois o seu verde onde brilhava um centro de vidro com uma mancha amarela rapidamente se tornou como o olho da serpente que ataca com a precisão fatal ao alvo. A velocidade com que voava de cova em cova em lançamentos certeiros, era-a demais para ser repetível, mas o problema passava pela constância dessa sorte, avidez nata que escoou, golpe a golpe, as jóias e sucata das reservas pessoais acumuladas noutras tardes de sorte, doações inesperadas por parentes nostálgicos, compras com sobras de recados à mãe, todas essas formas com que os tesouros se vão construindo, mais aquela que o Anacleto exibia.
Seria um seu muito prematuro ‘Euro Milhões’ mas, então, ainda com efeitos psicológicos mais devastadores pois a cara do Jorge já oscilava entre o choro que quase não se reprime, e a vergonha pala ‘abada’ que estava a levar e que o fazia enrubescer de fúria, traduzida em linguagem que mãe alguma ouviria ao seu rebento sem desmaiar.
O Anacleto vivia a sua glória até meio envergonhado e pensando nas consequências de esmagar de tal forma os seus amigos para a vida e outros jogos, onde talvez as coisas não corressem tão bem e as caneladas crescessem como cogumelos, soe dizer-se, mas gozava o momento por inteiro, absorvendo a coroação que surge dos sonhos quando uma tarde se torna perfeita, e o mundo pára para viver-se um daqueles que, - pensava o Anacleto, era um dos momentos mais importantes da sua vida.
Estranhamente nem um cão se via, talvez pelas moscas ou talvez apenas porque foram prudentes ao calor e, à sombra de mangueiras ou de palhotas, em beiras de muros, esperavam pela hora em que acorriam ao terreiro em frente à cantina, atraídos pelo movimento urbano do fim da tarde quando a luz brilha de forma mais inclemente e o formigueiro humano, com os seus desperdícios, estabelece-se.
Quem se apercebeu do movimento foi Anias – eis o nome do velho que dormita às moscas a tarde que corre, três covinhas, e os seus olhos semicerrados registaram o aparecimento da capulana de Raimunda na pequena passagem entre o quintal de mamana Eloísa e a casa onde viveram os Matsinhe antes dele adoecer e regressarem à Bela Vista, nunca mais a palhota fora habitada e notava-se no desalinho do caniço que delimita o seu pequeno quintal, rasgado por bolas e cães, pelo tempo que não se compadece de quem não está e não zela pelo perecível. O azul com um rendilhado cor de fogo em palmeiras brilhou como explosão de cor no opaco da paisagem e, aos olhos de Anias sucedeu o berlinde de Anacleto que parou no ar, imobilizado pelo dedo flectido que não saltou como mola que impulsiona o terrível abafador dos outros berlindes, a paisagem e até os cães se os nela houvesse, tudo fixou olhares e miras em Raimunda, na sua capulana azul com palmeiras em cor de fogo que torneavam os seus dezasseis anos, radiantes de beleza da juventude que emergiu no quente do terreiro como se de visão santa se tratasse, e a paisagem, os actores neles mergulhados a jogar às três covinhas, até o velho e as moscas mais os cães que não havia em lapso imperdoável de terreiro que se preze, tudo parou a olhar Raimunda, brisa que beijou o quadro fazendo a copa da velha árvore estremecer de prazer.

(continuará)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Estes berlindes que nos formaram! _ beijo, muf.

quarta-feira, janeiro 05, 2005 12:29:00 da tarde  

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