domingo, janeiro 30, 2005

Dia da Consulta

As consultas de psiquiatria no Hospital Distrital eram escalonadas por região-dia de semana. A segunda-feira, dia do meu código postal e, então, o único em que saía da minha gruta-bunker, dia em que, na sala de espera ou nos intermináveis cigarros sorvidos à porta da ala hospitalar, viam-se as caras conhecidas, um tímido olá mudo de reconhecimento, mistura de vergonha por estar no dia de consulta dos malucos da terra e, reconheço, o conforto que as caras conhecidas e de tal maleita até então insuspeitas trazia. Sentimentos mútuos, as caras não enganavam. O ambiente de depressão que se vive é amenizado pelo alívio em saber-se que não se é o único do bairro, da vila, em tratamento psiquiátrico.
Mas eram os ‘cromos’ que mais chamavam a atenção, não o anónimo vizinho que via-se(-nos) com surpresa naquela consulta a que se comparecia quase clandestinamente.
Havia aquele que eu crismara de ‘cara-alegre’, sempre a sorrir e em passo certo e ágil percorrendo os passeios da cidade, elegante casaco castanho com a mão nele mergulhada como se Napoleão das lezírias se tratasse, o eterno sorriso estampado na cara, por vezes uma gargalhada súbita que irrompia no imprevisto. Esse ia à injecção semanal pois o seu diálogo com o mundo ou com o médico que faz a ligação entre este e o particular do doente mental, há muito que estava terminado.
À injecção também ia o Zé Preto, com a sua característica boina basca, as barbas eriçadas e já com uns fios brancos, óculos redondos na cara redonda da sua pequena figura. O Zé, angolano, músico amador tomou-se de profissionalismos para com a doença e deixou-se arrastar por ela. Não estou a ser duro, estou a ser realista. O Zé assumiu o derrotismo como forma de vida e é, lamentavelmente em muito por inacção própria, hoje uma sombra do rapaz alegre que foi, prometedor músico em embrião, projecto humano que se deixou perder.
Ou aquele rapaz que veste como rockeiro-motoqueiro, botins e óculos escuros, cabelo espetado no ar por artes do gel, montado na sua bicicleta tipo pasteleira, muito efusivo e cordial mas por vezes estranhamente com o olhar parado, há o vizinho com quem nos cruzamos antes tanta e tanta vez e nunca suspeitamos que: “também tu, afinal…�
Por vezes chegava uma urgência e era visível o incómodo de todos os que andávamos na consulta de ambulatório, uns mais outros menos com a fala entaramelada pelos comprimidos mas todos acreditando que não caíamos no estado de demência crónica a que se assistia aos habituées, lia-se medo no nosso olhar quando entrava uma maca com as reveladoras ligaduras a prender, sob ela, as mãos do doente. Um que se passou. E eu? Suceder-me-á um dia?
Encarei ao princípio com cepticismo as consultas de psiquiatria e só a elas recorri como assumi, claramente, que necessitava de ajuda profissional para sair do buraco para onde me tinha deixado rolar, quando as alternativas do amanhã eram ainda mais negras que os quartos onde me refugiava, janelas e cortinas cerradas às pessoas, à luz, à vida. Demorei a acertar com o médico e ele comigo – há uma ponte de diálogo que se estabelece ou não: se ela não existir não há mistura de comprimidos que evite o resvalar para a injecção, para o olhar parado e ausente de tudo, o isolamento já nem procurado porque concedido com alívio por todos os que nos rodeiam. Ao terceiro médico consegui-o e estabeleceu-se a ponte que levou a que a consulta se tornasse semanal com prazer, aquela hora em que ambos falávamos, ambos pacientes ouvintes e segredos sussurrados e explicados como nunca antes fora feito ao íntimo. São algo de extraordinário as consultas de psiquiatria quando conseguidas. Vejo-as, as conversas médico-doente, como operações de cérebro aberto feitas sob o meu olhar menos receoso do que temia, espantado com a habilidade com que o outro cérebro pesquisa, a sua lógica e precisão, o levantar de pedras e revelar de cantinhos, o recuo progressivo na memória até ‘àquele’ momento cujo bater de asas de borboleta agitou ondas que, dezenas de anos depois – outra vida, provoca os ventos que incomodam e perturbam o que se perdeu, equilíbrio para horas de vida normais e não de pânico ou de isolamento demente. Como todos concordarão, as renitências a colaborar nestas intervenções a sangue frio são muito aceitáveis, e não é fácil concedê-las. �ntimo, pela envolvência que requer no acompanhar das deduções e na lenta construção que se faz de todo o percurso que aquela brisa de então provocou, levando ao despentear de emoções.
Eu um dia teria de falar nisto, mesmo que a pretexto do Cara-Alegre que hoje de manhã entrou na pastelaria onde eu tomava o café e – zás!, levou-me a pensar que o post de hoje estava feito. Eu um dia tinha de contar que houve um profissional da mente que me curou porque primeiro foi meu confidente atento, antes de passar a inevitável receita, de mais uma vez trocarem-se os azuis pelos vermelhos, às pintinhas, aos…
O primeiro de todos, laureado com aparições em tv, obra publicada, chefia da secção e a meses da reforma, ensaiou quantidades e modelos, alquimista via química que conseguia resultados extraordinários: numa quinzena eu andava com um olho fechado e outro arregalado, noutra a língua enrolava-se quando falava, e não cheguei a babar-me porque deixei de abrir a boca. Fazia longas dissertações sobre dúvidas existenciais, as mãos cruzadas na bata branca, o olhar perdido no tecto. Um professor. Assim que me vi livre dele – desistência mútua, e ele também já esgotara as combinações cromáticas de comprimidos disponíveis na paleta da sua psiquiatria. Depois, num episódio de semi-urgência a médica de serviço foi uma trintona daquelas que até fariam o Zé Preto parecer o Cara Alegre se estivesse uma hora com ela a sós – e a querer despir-nos…, aí passei por pouco tempo para ela, coisa para nem meia dúzia de consultas até ser reorganizado o serviço interno, pois entretanto o prof filósofo reformara-se e os seus doentes caíam que nem tordos nas urgências.
Ele, da minha idade ou um pouco mais novo, nunca o vi de bata e o ar mais informal possível, algo excêntrico, por vezes com um casaco de cabedal que não faria a ninguém duvidar que o seu meio de transporte era a mais que natural Harley-Davidson. Não a tinha ao que sei, mas com aquele casaco era o casamento de imagens perfeito, excluídas as dos hell’s angels que os usam sem mangas e sem muita coisa que é importante estar e não está.
De certa vez, estávamos no para mim alegre cavaquear em que se tornaram as consultas e falávamos sobre livros quando ele teve o acerto de alquimista que o colega não tivera, da estante saindo o bisturi para os acertos finais mas também agrafador e linha de coser suficientes para se começar a arrematar a manta, e arrumar sótão e cave. O tema veio porque antes pedira-lhe conselhos sobre o que ler, para eu acompanhar melhor, porque mais apetrechado tecnicamente, o meu tratamento, a evolução. Daí, ele soube que eu era leitor adicto, muiti-temático. Lia sobre tudo. Acreditem que tenho as coisas mais díspares por aqui espalhadas… Ele sugeriu Freud, e lá andei, lá andamos. Mas um dia, nessa tal vez que atrás estava a recordar, nessa consulta ele atira-me, em repente, com um nome: Crime e Castigo. Vai ao Dostoyevsky.
Fui. Só digo que fui, o resto foi lá falado, é íntimo e deu resultado.
Os comprimidos ainda duraram uns tempos após ele ter-me dito: Carlos, vamos mudar as consultas. Sempre que quiseres vens cá, marcas e conversamos. Mas tenho agora outras marcações que preciso alterar, tu quando precisares vens cá. Felizmente não voltei a precisar, só existindo a saudade daquela hora de conversa semanal que foi então tão importante na minha vida. E, felizmente, ao som da literatura.

4 Comments:

Blogger th said...

Que bom, é saudável poderes ver, distanciado, esse período da tua vida, sem pruridos ou complexos. Um abraço, cumplice de amiga. th

domingo, janeiro 30, 2005 10:47:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Uma vez mais, cumprimento o Homem que escreveu o 'post' _ IO.

domingo, janeiro 30, 2005 11:43:00 da tarde  
Blogger None said...

Que fluência de escrita! Este webenigma é um caso sério! Gostei do texto.
PS: só não gosto mesmo, é dos psis que intoxicam as pessoas de comprimidos e os deixam como descreves tão bem. Quanto aos outros, até podem fazer um bom trabalho, tal como os oftalmologistas que nos receitam lentes para ver melhor. Sei de pessoas que têm vergonha de usar óculos...há vergonhas para imensas coisas.

segunda-feira, janeiro 31, 2005 3:07:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Esta foi de "Corajem"...F

quarta-feira, fevereiro 02, 2005 10:23:00 da tarde  

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