sábado, janeiro 15, 2005

A capulana e o mar

A capulana enrolada quase no rabo, num nó ágil que desnuda segredos que as ondas beijam com lascívia. O vulto, dobrado, lenço na cabeça, blusa de chita e a capulana, que se destaca no mar agriculturado pela noite, prado de ondas e sabores salgados, que rompe, manso, contra a areia quente. As mãos seguem os olhos, argutos, que procuram búzios, conchas, os tesouros que as ondas dão à areia em fecundação que a faz brilhar ao sol quando o dia descobre o que a noite e as ondas deixam na praia para a seduzir.
Em volta dos joelhos a água remoinha e borbulha, os pés que se enterram devagar vão mudando o apoio ao sabor das mãos que recolhem as jóias do mar e de que ele se despoja finda a noite que o veste em prata para dançar o eterno namoro à areia da praia que o absorve no abraço, sequiosa dele mas talvez interesseira nas prendas com que o mar a seduz.
A capulana recebe o beijo e lá fica a sua marca, beijo húmido que lava pernas e panos, corpo dela e da sua capulana, híbrido adorno que se cola às pernas como temeroso da água que a molha, beijando-a sempre mais e mais enquanto as mãos recolhem os búzios e as conchas, cada uma tão diferente que, por vezes, o sol no alto suspende-se e brilha com mais força quando o vulto se ergue e a mão eleva um dos tesouros e, à sua luz e brilho, há olhos que riem no prazer da beleza que descobriram, tesouros do mar que a capulana guardará. As conchas têm matizes radiantes e brilham mais intensamente contra o céu que mergulha no verde das águas e não esconde a beleza poisada na areia. Fora da sua prisão de água, à luz que cai em ondas de calor, as conchas e os búzios brilham de forma especial antes de mergulharem no segredo que o nó da capulana esconde. O nó, lasso, vai cedendo ao peso do pequeno saco que a capulana dobrada forma, e é reposto enquanto as águas, a maré que vai e vem torneia-lhe as pernas magras mas robustas. Ritual colector, riqueza que a capulana conhece e conserva.
Ela comprara a capulana faria agora dois meses, quando vendera para o mercado a sorte dum dia às conchas que trouxeram um cesto de peixe, oferta dum pescador que ali aportara, o bojo da canoa cheio e muita vontade de partilha na sua fortuna com o vulto de capulana arregaçada que lhe fora farol enquanto as ondas o puxavam para a areia e, ao longe, lambiam de leve os panos e a moça que colhia as conchas como se de lagostas em ouro se tratasse.
Azul e com listas vermelhas, ao centro o mapa de mãe-�frica que lhe parecia enorme, tão grande como este mar que a molhava deixando rugas como se traçasse cadeias de montanhas onde aprendera que seriam terras de deserto, ocas de animais, verde, água, ocas desta �frica que ela conhecia e dava-lhe conchas e búzios; a capulana gostava de ir ao mar, dobrada em volta dos seus tesouros, molhada pela água excitantemente salgada, e gostava também da carícia da areia que as ondas traziam, das suaves ternuras e cócegas que as mãos dela lhe faziam, os dedos que faziam e refaziam o nó, quando a batiam e esfregavam para fazer a areia, já seca ao calor, sair do azul e do vermelho onde o contorno de �frica ganhava um tom especial sob o Sol que a aquecia após o beijo dele, o seu amante mar, dono das conchas e outros tesouros e que lhe os dava, malicioso e sedutor, para a seguir a beijar na sofreguidão das suas ondas que se erguiam roçando as nádegas e molhando a capulana.
Esse mar que a lambia com prazer e volúpia, que por cada prenda que dava requisitava mil e um beijos e carícias, ousado amante das listas vermelhas da capulana, da �frica que brilhava ao Sol e que tornava a espuma brilhante quando a onda ia e ficava o vazio de mar onde os seus restos viviam na capulana, brilhante de molhada, enrugada no excesso de ternura do abraço de paixão que recebera.
A dona da capulana e o pescador nunca se amaram assim, não há memória naquela praia de paixão tão intensa como a da capulana e do mar, romance que se repetia sempre que o vulto, dobrado, lenço na cabeça e blusa de chita, a capulana azul com listas vermelhas dobrada quase até às nádegas, recebia os beijos do mar e as ondas gritavam o seu prazer quando a acariciavam e ela brilhava, as cores mais intensas que nunca o foram – nem quando nova, o remoinho nas pernas olhava fascinado aquele beijo e, em bolhinhas corria atrás da onda que investia na areia, quente, solo nupcial dos ardores por conchas, búzios e outras carícias, da capulana e do mar. Consta na praia que, um dia, na areia quente o pescador afortunado e a moça dos búzios e das conchas deram um beijo mas dele não teve ciúmes o mar, pois ele amava era a capulana.