sábado, janeiro 01, 2005

As águas de Março

As águas do rio vinham num verde-escuro que não deixava ver os seus frutos e a rede mergulhou só pela suspeita que a sorte acredita, intuição que levou as mãos do mufana a lançar-lhes a rede que mestre Chimangue lhe emprestara.

Nos primeiros tempos deste amor acompanhara o pescador e com ele passara tardes pelo rio acima, juntos no barco que era o orgulho do madala e até àquela curva onde se viam as casas dos mulungos; aprendera o modo de lançar a rede, os gestos dos braços que lançam abrindo-a antes de mergulhar no revolto do rio, prenhe de peixe que ocorria ao múltiplo isco que a cantina e as casas em volta deitavam para as águas. Era com o dia a sumir-se atrás da copa das palmeiras que o barco regressava à aldeia, embalado na corrente, tantos dias e tantos sóis que assim morreram com as redes secas do seu sumo que estrebuchava entre os seus pés. Assim M´penze aprendeu o rio e aprendeu a pescar, e maravilhava-se com a fortuna que ele dava sem pedir nada em troca – navegar era um prazer que a si mesmo invejava quando via a proa cortar as águas com a força que davam aos remos.

Gostava de pescar, do rio, e das suas margens onde macacos os olhavam curiosos e guinchavam em protesto por não saberem fazê-lo, e queria um dia suceder a mestre Chimangue quando este, já cocuana, passasse os dias sentado na sombra da sua palhota conversando o mundo, o rio e o sol que aquece o campim seco nas margens, o tempo passando pelas suas mãos que gesticulariam com os espíritos que voam sempre em volta das conversas dos velhos.

M’penze até se imaginava a vender o peixe lá longe, onde o mestre já não ia por estar madala, e as moedas dos mulungos a fazerem o monte da sua corte a Raimunda, ao lobolo que um dia queria pagar para tê-la, pois amava-a e sorria como nunca quando a via, ela na machamba ajudando a mãe e as tias, ele em corrida pelos caminhos que levassem os seus olhos a vê-la, elas a rirem-se e a gritarem-lhe:
“- baya kwini ah mufana?�
- ele a rir-se também e a correr deixando os olhos nos dela, Raimunda . Depois comprava uma ginga, falava lá na cantina ao patrão mulungo e ele ia buscá-la ao chitimela, lá muito longe das águas do rio.

Uma manhã, ainda curta para desembrulharem o almoço, estava o barco amarrado na margem e, indiferentes aos mosquitos que patrulhavam as margens olhavam ociosamente o nada e o tudo que as árvores têm, mestre Chimangue puxou palavras que lhe fizeram bem, deu-lhe conselhos sobre o amor, as raparigas, a Raimunda, e o pai dela. Sem poder pagar o lobolo nunca se devia aproximar, e as suas palavras contaram lendas de noivos que perderam ilusões na selva entre risos de kizumbas e o rugido do leão, forçados a abandonar a aldeia por quererem trapacear o lobolo, julgando-o um encargo e sem olharem à honra de cumpri-lo. O espírito dos velhos nunca o permitiria.

M’penze, ainda novo mas que gostava de pensar como se fosse já um homem grande, como mestre Chimangue que um dia também pagara o lobolo por Maria Magaia, sua mamana, ia pescar muito peixe e ia conseguir pagar o lobolo de Raimunda, e nas noites estreladas em que sonhava que as suas esteiras dormiam lado a lado olhava a fartura do seu futuro, via o rio como sua fonte.

Mestre Chimangue nunca lhe emprestara o barco embora os seus olhos não enganassem quando para ele olhava nas manhãs em que, chegado à palhota dele, Maria Magaia lhe dizia que o mestre estava doente pois bebera tontonto demais na noite anterior, e não ia haver pesca. Dizia, rindo-se, que ele era mufana demais para que os seus braços levassem no remo o barco para os sítios certos. O máximo que acontecia era emprestar-lhe uma rede, - como agora fizera, e ele aventurava artes e sacudia saudades pelas margens, tentando aqui e ali que nas redes voltassem as medalhas que queria exibir a mestre Chimangue, muitos peixes pescados sozinhos, e sem o barco.

Sentou-se numa pedra para olhar as águas e esperar sinais que a zona fora bem escolhida, meteu a mão nos calções e tirou a harmónica que Gabriel lhe dera quando o seu pai, no rand, lhe trouxera uma nova.
Ao primeiro sopro o silêncio caiu e todos os pequenos ruídos do mato cessaram por segundos, atónitos pelo novo trinado que ecoava entre as folhas das palmeiras e até alguns de protesto apareceram, mas depressa os sons que os seus lábios sopravam casaram-se com os que o ar quente trazia num acompanhamento de orquestra onde os solistas competiam pelo seu momento. M’penze gostava de tocar a harmónica, achava-a mágica, e não só era bonita no metal que brilhava com estranhos sinais gravados que deveriam ser a língua do mulungo, como sentia-se senhor de grandes feitiços ao arrancar uma música estranha daquele instrumento que soava mais alto que um chikitse ou os chogului com que brincara quando era mais mufana e ainda Raimunda não lhe sorria.

Mestre Chimangue não gostava que ele tocasse a harmónica quando estavam a pescar, dizia ter medo que a música chamasse os espíritos que moravam nas águas do rio, e mestre amava o rio mas também o temia.

(continuará)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Deliciei-me! quando há um ano me mostravas os escritos da Eva e eu te dizia que devias escrever sobre outros temos, era nestes que eu pensava. Aqui consegue-se até "ouvir" as águas, a folhagem ao vento, os macacos...vou esperar por mais...th

sábado, janeiro 01, 2005 11:01:00 da tarde  

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