Passeando no jardim: o "cheirinho da Lóló"
A tarde cai devagar no jardim e as árvores soltam as folhas que cobrem a relva e os caminhos por entre os canteiros dum rasto verde que passos ociosos pisam, fazendo soar estalidos secos quando os pés esmagam as folhas, castigo final de terem abandonado o céu e descido à terra.
Num canto, no caminho menos movimentado e que deverá ser procurado por quem busca o isolamento naquele verde que é ilha, um banco solitário e uma farda solitária que nele repousa. Uma farda que é parte do quotidiano na cidade, e que se confunde na paisagem dos dias e no néon das noites, ora em isolamento dos grupos em que elas se defendem do medo que a cidade cria a quem vive há longos meses os mesmos dias e as mesmas noites em picadas de mato e longe de tudo o que ela oferece, cinemas, mulheres, música, prazer, nos sempre curtos dias de férias que a guerra no norte do paÃs permite, guerra que para tantos só é sua por força duma lei e não dum sentimento.
Olho-a, a farda, olho-o, o soldado, a boina pousada ao lado. Já ele, pose furtiva, observa-me, as mãos inábeis escondendo entre as pernas o que me parece, ainda distante, uma lata semelhante à s de gás para isqueiros ou mata-moscas, tipo spray. Ao som do ‘tac-tac’ que o meu pisar extrai à s folhas, o meu passear encaminha-se para ele e os seus olhos acompanham-me quando percorro os metros que me aproximam do banco de jardim e do soldado, vejo-o e ele vê-me, eu com o cabelo grande e ele curto, ambos jovens e por certo com poucos anos entre nós. A mão segura a boina, amarfanha-a, os joelhos apertam-se para melhor esconder a lata, ou o que fosse e atraÃra a minha curiosidade.
Talvez porque há momentos em que apetece quebrar a solidão com um desconhecido, talvez por um sexto sentido que arrisca sempre mais do que o sétimo aconselharia se a ele se dessem ouvidos, em descuido estudado levo o cigarro de suruma à boca, deixando visÃvel a sua engelhada manufactura, denúncia complementar à reconhecÃvel em sede do de olfacto pois o seu aroma é inconfundÃvel com aquele que emana do verde não incandescente das flores ou o da terra negra, húmida, e os meus olhos fotografam nos dele qualquer sinal de reconhecimento, hostilidade ou simpatia, censura ou indiferença.
Quando entrei no jardim, já com o charro feito e guardado na caixa de cigarros “Palmarâ€� (das grandes, com trinta cigarros, as que eu gostava de comprar), à quela hora este parecera deserto naquela zona mais afastada da avenida e foi para lá que dirigi os passos tragando os primeiros fumos inebriantes, procurando no seu sossego viver as primeiras sensações que o cigarro de suruma traz, quando vi o soldado. A ele e aos olhares furtivos, ao gesto de esconder algo quando viu que para lá caminhava. A atitude de clandestinidade que é irresistÃvel apelo a que a minha curiosidade sucumbe e, entre tragos que espalham exóticos odores pelos canteiros à minha volta, para lá encaminho passos casuais e os tais aromas denunciadores, ora confirmáveis visualmente com a exibição da sua tosca e mal amanhada proveniência. Os seus olhos reflectem o que vejo, um descontrair facial abandonando o receio e a hostilidade que a intromissão no seu território provocara.
Terá sido um gesto mudo de oferta do charro, terão talvez sido palavras, já não me lembro. Enquanto a luz da tarde cedia lugar ao vermelho do céu que escurece, sentados no banco mais fundo do Jardim Dª Berta Craveiro Lopes, bairro do Malhangalene em Lourenço Marques, partilhou-se o cigarro surumático e, com um soldado desconhecido, fiquei a conhecer o “cheirinho da Lóló� e aprendi como reconhecer outros soldados dele adeptos. Houve em mim um alarme que soou e que contribuiu para nunca mais experimentar o “cheirinho�, porque nunca o procurei e podia tê-lo feito; em mim algo sentiu que pisava um risco virtual, que se pisa curricularmente mas que defesas inconscientes alertam para não ultrapassar.
A boina é o sinal e marca. A boina militar denunciadora na mancha que descolorira o seu tecido, alva auréola em cores guerreiras que identifica o “cheirinho da Lóló�, pois é nela que o spray é derramado para ser inalado, provocando segundos de ‘flash’ cerebral onde as copas das árvores giram e o céu cresce, a luz brilha como antes não o fazia numa onda intensa de cor, e, por fim, o cérebro adormece os olhos e a sensibilidade esvai-se dos membros numa modorra que adormece a pele, longos minutos em que o corpo está não estando, a sua ausência é notada, consciência contraditória. Depois regressa o jardim e os seus canteiros e as folhas no chão, os carros na avenida soam como antes soavam, longe, tudo regressa com as pessoas que caminham entre as árvores que não o fazem porque gostam de ali estar.
A lata escondida era dum anestesiante, pelo que então aprendi fornecido aos militares para atenuar dores de sempre possÃvel estilhaço, bala, ou ferida de mero acidente de andar no mato, e que muitas vezes era guardado nas mochilas para além do regresso ao quartel. Eis o “cheirinho da Lólóâ€�, evasão militar ao ‘rush’ da guerra e do isolamento em povoações e quartéis perdidos em mapas do tamanho dum paÃs imenso, onde as bolinhas grandes assinalam as cidades onde o néon brilha, e as pequenas aquelas onde tudo falta, incluindo um néon que não evoque demónios como o “cheirinho da Lólóâ€�. O soldado, nas tais férias militares que as companhias gozavam na ‘capital’ após longos meses de mato, talvez porque preso de amores à sua amante fiel durante esse tempo de isolamento que parecia interminável, trouxera a lata e não prescindia duns sôfregos ‘snifs’ à boina, como a denunciadora mancha esbranquiçada atestava.
Foi assim que conheci o “cheirinho da Lólóâ€�, sub-produto da guerra colonial que num fim de tarde me foi apresentado num banco de jardim de LM por um soldado desconhecido, princÃpios dos anos setenta do falecido século de todos os enganos e desilusões, mas também de todos os sonhos. Já em Portugal e muitos anos depois, pela imprensa e tv’s soube dos meninos da rua das nossas ilhas, com a mega-Lisboa à cabeça, que utilizam cola para inalarem por minutos a ilusão que vença a miséria em que vivem. Talvez como o soldado solitário do banco de jardim, talvez como os solitários do mundo procuram os seus “cheirinho da Lólóâ€� em múltiplas variações e máscaras, simulando que o real é diferente e que as copas das árvores vergam-se no céu que brilha, afagando-os como eles sonham que alguém o deveria fazer e em indesculpável omissão a humanidade esqueceu-se. Talvez o spray fosse a ilusão protectora à realidade que o cheiro da cola trará, talvez a boina descolorida fosse só mais um trapo denunciador do absurdo que a guerra é, pois não esconde na sua farda os gritos mudos de quem as veste.
Num canto, no caminho menos movimentado e que deverá ser procurado por quem busca o isolamento naquele verde que é ilha, um banco solitário e uma farda solitária que nele repousa. Uma farda que é parte do quotidiano na cidade, e que se confunde na paisagem dos dias e no néon das noites, ora em isolamento dos grupos em que elas se defendem do medo que a cidade cria a quem vive há longos meses os mesmos dias e as mesmas noites em picadas de mato e longe de tudo o que ela oferece, cinemas, mulheres, música, prazer, nos sempre curtos dias de férias que a guerra no norte do paÃs permite, guerra que para tantos só é sua por força duma lei e não dum sentimento.
Olho-a, a farda, olho-o, o soldado, a boina pousada ao lado. Já ele, pose furtiva, observa-me, as mãos inábeis escondendo entre as pernas o que me parece, ainda distante, uma lata semelhante à s de gás para isqueiros ou mata-moscas, tipo spray. Ao som do ‘tac-tac’ que o meu pisar extrai à s folhas, o meu passear encaminha-se para ele e os seus olhos acompanham-me quando percorro os metros que me aproximam do banco de jardim e do soldado, vejo-o e ele vê-me, eu com o cabelo grande e ele curto, ambos jovens e por certo com poucos anos entre nós. A mão segura a boina, amarfanha-a, os joelhos apertam-se para melhor esconder a lata, ou o que fosse e atraÃra a minha curiosidade.
Talvez porque há momentos em que apetece quebrar a solidão com um desconhecido, talvez por um sexto sentido que arrisca sempre mais do que o sétimo aconselharia se a ele se dessem ouvidos, em descuido estudado levo o cigarro de suruma à boca, deixando visÃvel a sua engelhada manufactura, denúncia complementar à reconhecÃvel em sede do de olfacto pois o seu aroma é inconfundÃvel com aquele que emana do verde não incandescente das flores ou o da terra negra, húmida, e os meus olhos fotografam nos dele qualquer sinal de reconhecimento, hostilidade ou simpatia, censura ou indiferença.
Quando entrei no jardim, já com o charro feito e guardado na caixa de cigarros “Palmarâ€� (das grandes, com trinta cigarros, as que eu gostava de comprar), à quela hora este parecera deserto naquela zona mais afastada da avenida e foi para lá que dirigi os passos tragando os primeiros fumos inebriantes, procurando no seu sossego viver as primeiras sensações que o cigarro de suruma traz, quando vi o soldado. A ele e aos olhares furtivos, ao gesto de esconder algo quando viu que para lá caminhava. A atitude de clandestinidade que é irresistÃvel apelo a que a minha curiosidade sucumbe e, entre tragos que espalham exóticos odores pelos canteiros à minha volta, para lá encaminho passos casuais e os tais aromas denunciadores, ora confirmáveis visualmente com a exibição da sua tosca e mal amanhada proveniência. Os seus olhos reflectem o que vejo, um descontrair facial abandonando o receio e a hostilidade que a intromissão no seu território provocara.
Terá sido um gesto mudo de oferta do charro, terão talvez sido palavras, já não me lembro. Enquanto a luz da tarde cedia lugar ao vermelho do céu que escurece, sentados no banco mais fundo do Jardim Dª Berta Craveiro Lopes, bairro do Malhangalene em Lourenço Marques, partilhou-se o cigarro surumático e, com um soldado desconhecido, fiquei a conhecer o “cheirinho da Lóló� e aprendi como reconhecer outros soldados dele adeptos. Houve em mim um alarme que soou e que contribuiu para nunca mais experimentar o “cheirinho�, porque nunca o procurei e podia tê-lo feito; em mim algo sentiu que pisava um risco virtual, que se pisa curricularmente mas que defesas inconscientes alertam para não ultrapassar.
A boina é o sinal e marca. A boina militar denunciadora na mancha que descolorira o seu tecido, alva auréola em cores guerreiras que identifica o “cheirinho da Lóló�, pois é nela que o spray é derramado para ser inalado, provocando segundos de ‘flash’ cerebral onde as copas das árvores giram e o céu cresce, a luz brilha como antes não o fazia numa onda intensa de cor, e, por fim, o cérebro adormece os olhos e a sensibilidade esvai-se dos membros numa modorra que adormece a pele, longos minutos em que o corpo está não estando, a sua ausência é notada, consciência contraditória. Depois regressa o jardim e os seus canteiros e as folhas no chão, os carros na avenida soam como antes soavam, longe, tudo regressa com as pessoas que caminham entre as árvores que não o fazem porque gostam de ali estar.
A lata escondida era dum anestesiante, pelo que então aprendi fornecido aos militares para atenuar dores de sempre possÃvel estilhaço, bala, ou ferida de mero acidente de andar no mato, e que muitas vezes era guardado nas mochilas para além do regresso ao quartel. Eis o “cheirinho da Lólóâ€�, evasão militar ao ‘rush’ da guerra e do isolamento em povoações e quartéis perdidos em mapas do tamanho dum paÃs imenso, onde as bolinhas grandes assinalam as cidades onde o néon brilha, e as pequenas aquelas onde tudo falta, incluindo um néon que não evoque demónios como o “cheirinho da Lólóâ€�. O soldado, nas tais férias militares que as companhias gozavam na ‘capital’ após longos meses de mato, talvez porque preso de amores à sua amante fiel durante esse tempo de isolamento que parecia interminável, trouxera a lata e não prescindia duns sôfregos ‘snifs’ à boina, como a denunciadora mancha esbranquiçada atestava.
Foi assim que conheci o “cheirinho da Lólóâ€�, sub-produto da guerra colonial que num fim de tarde me foi apresentado num banco de jardim de LM por um soldado desconhecido, princÃpios dos anos setenta do falecido século de todos os enganos e desilusões, mas também de todos os sonhos. Já em Portugal e muitos anos depois, pela imprensa e tv’s soube dos meninos da rua das nossas ilhas, com a mega-Lisboa à cabeça, que utilizam cola para inalarem por minutos a ilusão que vença a miséria em que vivem. Talvez como o soldado solitário do banco de jardim, talvez como os solitários do mundo procuram os seus “cheirinho da Lólóâ€� em múltiplas variações e máscaras, simulando que o real é diferente e que as copas das árvores vergam-se no céu que brilha, afagando-os como eles sonham que alguém o deveria fazer e em indesculpável omissão a humanidade esqueceu-se. Talvez o spray fosse a ilusão protectora à realidade que o cheiro da cola trará, talvez a boina descolorida fosse só mais um trapo denunciador do absurdo que a guerra é, pois não esconde na sua farda os gritos mudos de quem as veste.
1 Comments:
Aqui deixo o que escrevi no MOH:
Realidades...realidades a que não podemos nem devemos virar costas, o testemunho dessas realidades e doutras teem vindo ter connosco como ondas que chegam à praia, qual banho de conhecimento! th
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