sexta-feira, dezembro 10, 2004

A mão que voa

Ao ler a entrevista de António Lobo Antunes no último “Expresso� – suplemento ‘Actual' – houve uma referência que me fez sorrir pois lembrou-me os meus primeiros tempos nestas andanças e um comentário que uma cúmplice então me fez.
Foi a alusão àqueles momentos em que o escritor vê a sua mão como ser autónomo, dotada de capacidades prosadoras próprias, e debita linhas atrás de linhas sem parar, sem que se consiga ou queira parar o fluxo de palavras que se estende pelas folhas, metade de mim, metade da mão com vida própria, a que voa no céu que é escrever a alma, nossa e dos outros, que a mente sonhou. Nessas ocasiões, o escritor é quase um espectador atónito perante a mão que vence a folha de papel em branco, esse fantasma que atormenta quem tudo faz por imaginar-se escritor, criador, escrevente de emoções, e assiste fascinado à sua mão que, corpo estranho, vence o medo e solta as palavras que se devem escrever.

Claro que a mão é minha, tua, do António ou da Teresa e a paixão tem de ser prévia, há que morder a maçã antes e descobrir que faz bem à alma abrir cortinas e mostrar os sonhos, soltar aquele que gosta tanto de ler os outros que, - também ele!, quer contar algo em letras alinhadas para que alguém, lendo-o, lhe dê um abraço ou uma piscadela de olho, reacções que se eternizam na leitura intemporal e que o escritor ambiciona ao prosar e em prazer supremo sente-as, difusas pelo tempo que se escoa, mas presentes quando em presença de alguém que o leu e, talvez, à sua mão que voou livre, clara ao contar-lhe segredos que só o leitor compreende.

De vez em quando dou a volta que mais desejo e procuro amigos cujo contacto nasceu virtual e por aí comunica diariamente, tertúlia que não se dispensa mesmo que em mesa retirada, um olhar vago ao mundo e navegando no doce retiro do pensamento, mas mesmo nesses isolamentos periódicos, sempre com o ruído de fundo a serem palavras que estimo – e por isso não enjeito oportunidade de olhar nos olhos quem as escreveu, sorrir a quem eu gosto. Aí, nesses momentos em que os silêncios não são corpo estranho pois muito do essencial já entre nós foi escrito e lido, penso na mão criadora, livre de amarras e que correu solta no papel enchendo-o de si mas como que acto de outro, dum estranho, gémeo de húmus criador onde em gesta inesperada ela, mão que voa, brotou. Penso que lemo-nos como nunca falaríamos – porque a oralidade é condicionada a tantas outras sensações como o pólen que me atrai ou o Sol que me aquece, que todos conhecemos uns aos outros a mão que por vezes voa, e escreve. Sinto-me e sei-me cúmplice de momentos mágicos, jardim místico que sacia desejos pois ele é um templo e quem escreve é seu crente. Pela mão que escreveu, pelos dedos que doíam mas a mão não parava, insensível na sua vida própria e que corria pelo branco do papel em frenesim que não se detinha, voando.

Eis o que procuro, ela procura o mesmo. Ela que foi a tal cúmplice que me falou pela primeira vez na mão que voa em impulso criador próprio, e que então reconheci como alguns momentos estranhos que tinham roçado o meu patamar, deixando-me a sonhar com uma visita mais assídua. ALB evocou-a e isso fez-me pensar em como já bebi do cálice mas em como ele é esquivo para lábios tão sequiosos e, como eu, a Isabella, o Lobo Antunes, tu, todos os que amam a nobreza da escrita, e felizes são os que dela recebem mais que um afago ocasional – eis os que poderão gabar título de escritor pois têm a ‘mão que voa’ como habitante do seu mundo, e escrevem aquelas palavras que são a diferença para quem as lê como sendo também suas, comungando letra a letra o sentir do escritor que a mão criadora escreveu.

Há aqueles momentos em que o olhar se funde nos objectos em cima da secretária, vago porque perdido no nada, no oco seco do medo, perdido no fiozinho que se quebrou e calou a mão criadora. Mão preguiçosa, mão lenta em testemunhar o resto que se pensa e se esvai sem ser gritado em letras que eternizam, sangue, pus, as tais lágrimas mas muitos sorrisos e tantas ternuras. Nas palavras de Lobo Antunes li a sugestão de como aspirar a bilhete de acesso ao show da mão criadora: disciplina de escrita, insistência, exercício constante, em resumo trabalho. Por miúdos e em bom português, não se marca um golo sem entrar em campo, não há mão criadora se não houver mão disciplinada, que encha folhas em branco, forma cerrada, feia, chata de ler, para permitir vez a que a ‘outra’ surja como janela que se abre sobre um mar que não tem limite, e brilha.

Ando aqui de casa em casa, tendo adormecer o cérebro com futilidades, resmungo sobre a qualidade do template, ou se faz frio ou porque não chovem políticos que o saibam ser, tudo mil e um pretextos para que a caneta não cumpra a sua arte e dê uma oportunidade séria a que das letras saia algo que seja nascido para recordar quando passamos o olhar pela estante das coisas boas que lemos. Pedaços de liberdade em mão solta contados, lidos como escritos por mão solta de tanto e de tudo, como se doutro fossem nascidos, como um livro que se compra e gosta-se de o ler, enviando a tal carícia que o escritor magicamente sente.
Como eu os sonho, serão jóias que recebem as carícias que o diamante inveja quando é a mão que pensa por si, pois as palavras não são ditadas pelo consciente, já alvo de posse dum outro poder criador que domina a mão e verga o branco da folha às letras que se sucedem, enchendo-o de letras, palavras, frases, sentido, contando a vida, o eu, o tu, a beleza que esmaga do mar, o capim que seca perante o olhar indiferente do Sol que grava em calor memórias, o calor da sua saudade, hoje sob mote da “mão que voa� contado dado que a glaciariedade emergente é conselheira de tão quente memória.

Olho para estes dedos que se estendem em letras sem nexo e que vou ler como palavras, prosa, e em cada momento que param o seu picotar de mais e mais linhas que apaguem o papel branco, em cada um desses momentos em que se eleva o olhar, receoso, para o que a escrita pariu, há o fantasma da mão voadora sempre presente e a sua ausência é dolorosa para quem aspira que as suas letras sejam comungadas, acariciadas na leitura alheia. O texto que vale nasce da mão que voa, o resto é ensaio de voo que é necessário cumprir para que as asas se elevem e, com naturalidade, nasça o escritor que é escravo da mão criadora, disciplinadora de ténues arranques que se sucedem e alisam a estrada onde a voadora possa estender a sua criação em serpentear narrativo, e haja escritor.

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"e haja escritor"! Parabéns, obrigada por nos deixares ler este voo tão sensível da tua caneta _ "ela".

sexta-feira, dezembro 10, 2004 9:15:00 da tarde  
Blogger Unknown said...

Ar puro no fim de uma semana sem ar para respirar. Obrigado Carlos.

sexta-feira, dezembro 10, 2004 9:37:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Entendi, oh se entendi. Obrigado estimado Carlos. João Tunes

sexta-feira, dezembro 10, 2004 9:55:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

...E o destino do voo se cumpriu já que as suas letras foram "comungadas, acariciadas na leitura alheia."
Reconhecida a seiva que faz voar a criação! th

sexta-feira, dezembro 10, 2004 10:56:00 da tarde  
Blogger Madalena said...

Carlos, vou dizer-te o que sinto da forma mais simples:escreves tão bem!
Penso, na minha humildade, que o acto da criação é isso mesmo: algo que se desprende do criador e toma vida própria.
Sem ser propriamente a mesma coisa, recordo-me de ter visto um programa no Odisseia sobre a "mão autónoma", uma patologia do foro da neurologia.
Claro que no caso da criação literária, não se pode desresponsabilizar, descredibilizar, o cérebro, onde o pensamento e as palavras cumprem a sua gestação, qual útero de mãe biológica!
Beijinhos

sábado, dezembro 11, 2004 8:49:00 da manhã  

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