quarta-feira, dezembro 29, 2004

Escrever para o leitor

Tenho entre mãos (ainda no início, primeiras páginas) um livro dum escritor intimista, dos tais que estabelecem um diálogo comigo enquanto as personagens soluçam por desfiar-se na estória que se vai formando. Se esta ainda não cativa porque curta para sentir-lhe cheiros e cores, a ligação estabelece-se e da escrita vem aquele perfume que atrai, quase diria o olho guloso que se fixa nas palavras, e diz-se: - eu quero ler-te, tu estás aí.
Parabéns autor. Conseguiste, mais uma vez vendeste carne e sangue (vendeste? até de graça o farias, confessa-o, escritor…) e libertaste os demónios que a solidão tranca nos dias que serão anos, e um dia ou uma noite brilham-te nas palavras, pretexto de fuga, afinal só a escrita de sonhos e pesadelos íntimos iguais aos do teu leitor. Mas mete medo António, mete medo pensar que se pode chorar de nós assim, com lombada e preço certo que legitima mãos e olhos em nós como se fossem os olhos do bairro que perseguem a rotina anónima, os olhos que surpreendem quando esquecemo-nos de vestir a pele e mostramos as pérolas que em nós guardamos desde criança. Mete medo António, escrever assim; e eu, teu leitor e leitor de todos que assim me escrevam, escancaro também cantos das minhas grutas secretas quando tu me escreves assim, e uma luz ilumina o demónio que gostaria de um dia fazê-lo, também assim.