quinta-feira, dezembro 30, 2004

A Ana

A Ana trabalha desde os vinte e um e tem hoje cinquenta e dois anos. Sempre para o mesmo patrão, que quando a contratou prometeu-lhe a então longínqua reforma para quando fizesse trinta anos de serviço à causa.
A Ana foi envelhecendo e o serviço foi-se tornando mais penoso com a décalage natural de quem sente no seu corpo e nas suas faculdades a erosão da idade.
Nos últimos anos o patrão não a aumentou e, pior, adiou-lhe a reforma para uma idade em que ela, sente e di-lo, se lá chegar a sua vida estará consumida até ao osso e a reforma sonhada e adiada não será mais que o penúltimo suspiro.
Ela, Ana, sempre teve um horário bonito de olhar mas com contornos pouco precisos quando aplicado. O seu horário é contínuo, na hora de almoço a Ana e os colegas revezam-se em folgas de meia-hora para comerem, e diz o horário que sairá às quatro da tarde, hora bonita porque lhe permite ver ainda o Sol que o frio dos néons lhe esconde enquanto as horas passam, devagar.
Mas já há muitos anos que o volume de serviço aumentou, burocratizou-se, multiplicou-se, e também a Ana foi ficando mais velha, mais cansada. Assim é aos mesmos anos que a Ana nunca sai às quatro da tarde, mas às cinco, seis, sete. No período do Verão ainda vê o Sol quando vai para casa, mas no Inverno é noite quando, cansada, vira as costas a mais um dia e apanha o autocarro.
O que mais custa à Ana são as horas contínuas em pé, o sobe e desce escadote para arrumar os frasquinhos e as caixinhas de medicamentos, o cansaço que a vai dominando enquanto avia os pedidos das enfermarias, dá baixa nas existências e confere a medicamentação que cada necessitado irá tomar. De segunda a sexta-feira, desde os vinte e um e hoje tem cinquenta e dois, rotina que uma nova lei diz que durará até aos sessenta e cinco anos, se não morrer antes.
Mesmo os colegas mais novos e mais fortes também se queixam, mas são mais novos e mais fortes e conseguem despachar o seu serviço mais rapidamente que a Ana, que tem cinquenta e dois anos e desde os vinte e um que sobe e desce ao escadote quilómetros por semana – e tantas que já lá vão desde que fez, sem comemoração, trinta anos ‘de casa’. O patrão alega dificuldades e nunca paga horas extraordinárias, mesmo quando os atrasos não são da demora da Ana em subir e descer o escadote mas sim das muitas mais vezes que é preciso fazê-lo. Nem à Ana nem a ninguém, embora todos concordem que é uma injustiça, embora todos anuam que dez horas de pé, continuamente, diariamente, são uma violência que deveria ser indemnizada.

A Ana hoje olhou para o relógio quando passou em frente à placa que diz “Hospital, SA�, e viu o ponteiro hesitar entre as nove e as nove e meia da noite. A Ana está farta, odeia o escadote, o horário, a SA, e quem se esqueceu dela e do seu cansaço, quem a condenou a mais treze anos de escadote e lhe roubou o Sol ao seu Outono.

2 Comments:

Blogger Madalena said...

Lindo o teu texto! Feia a realidade que denuncia!

quinta-feira, dezembro 30, 2004 1:10:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

A minha homenagem à MULHER, chame-se ela Ana, Beatriz, Célia ou Paula! th

quinta-feira, dezembro 30, 2004 6:30:00 da tarde  

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