sábado, novembro 20, 2004

Quando o mar bate nas rochas - os anos difíceis III

1976 foi o ano de transição, da integração numa nova realidade e palco de tantas experiências marcantes… aos condimentos já anunciados somava-se a inconsciência de ser novo e acreditar que todos os problemas são superáveis. Sim, esta faceta de encarar o quotidiano não é só positiva pois há ocasiões em que cuidados precavidos não são demais e só golpes de sorte permitem que daí a três décadas haja testemunho escrito.
Esse verão foi em parte passado na Ericeira onde o João Belo, o Toni e já não sei mais quem habitavam uma moradia com obras inacabadas, daquelas que se vêm há tempo demais sem reboco e sem dinheiro para o fazer. Obra abandonada. Aí, com a habitual população residente flutuante nestas situações, também eu um dia aportei e a presença foi-se arrastando ao sabor dos dias e do mar que eram agradáveis, praias gélidas mas manto de areia em moldura marítima que estabelecia uma ponte ao passado recente, memórias que então sedimentavam para sempre. Um luxo, abrilhantado pela novidade que era viver da venda de artesanato ao turismo, os de mãos mais inábeis como eu em volta dos colares e pulseiras de missangas, outros mais experientes fabricando sacos em couro cosidos à mão, já na altura objecto caro mesmo no comércio marginal que fazíamos nas lojas viradas para o turismo de verão. A natureza sorria e também era pródiga nos frutos que nos oferecia. Era um prazer percorrer as praias com um saco que se enchia de berbigão, meia dúzia de tomates e de cebolas para dentro da panela e muito pão para ensopar – eis o almoço de estio ideal, e barato.
Na praia, a densidade de toalhas e apetrechos habitual levava-nos a procurarmos a zona mais afastada, já junto às rochas e onde a maré baixa permitia aceder a uma praia mais pequena e isolada a olhares curiosos com os hábitos tabagistas alheios. Mas nem esta escapava à enchente que rouba a privacidade e muitas vezes aventurávamo-nos a explorar a zona das rochas sob as escarpas, onde as ondas rebentavam e a água beijava mansamente pequenas línguas de areia que as marés descobriam.
Talvez a uns sete quilómetros por estrada está a Foz do Lisandro, local que já tinha visitado uma vez e que pouco mais era, à altura, que um restaurante de paria, abarracado, para os seus poucos frequentadores. Ali, na praia da Ericeira, olhando para a margem rochosa das escarpas e para a espuma que se formava ao longe quando as ondas rebentavam, quase que se podia dizer com segurança “estou a ver a praia do Lisandro, é já ali� e acreditar-se que o caminho saltando de rocha em rocha far-se-ia sem dificuldade insuperável, atalho acessível e curto. Um dia, eu e outro que penso ser o Toni fomo-nos aventurando pelas rochas à procura dum local inédito e sossegado para gozarmos a natureza longe do bulício turístico e, a rochas tantas, interrogamo-nos sobre se não seria melhor seguirmos até à Foz do Lisando – para cá vínhamos à boleia. É que a praia da Ericeira já ficava lá para trás um bom bocado, quase sem estar à vista, e ainda não tínhamos descoberto uma nesga de areia entre aquelas paredes que se precipitavam sobre nós, inacessíveis, e o mar para além das rochas era forte demais para iniciativas natatórias principalmente para quem, como eu, tem ascendência de prego e de ferradura.
Assim fomos avançando, saltando de pedra em pedra e entreajudando-nos, por vezes mergulhando até ao peito para conseguir alcançar o ponto fixo seguinte.
A experiência é extraordinária e merece ser narrada. O mar, crescendo nas suas marés que cada vez mais obrigavam a pausas de percurso onde nos agarrávamo-nos às rochas para aguentar o impacto das ondas que insistam ciclicamente em arrastar-nos contra os ameaçadores contornos afiados como lâminas da imensa parede de pedra que destruía qualquer esperança de escapatória por escalada. O impacto das ondas e a sua espuma que nos inunda na rebentação, que se começa a prever quando o receio cresce tão depressa como a água que, antes bordejando joelhos quando a maré avança, ora com ela alta já tornando invisíveis a miríade de pontos de apoio que percorrera-mos, ameaçava impedir-nos qualquer regresso à praiazinha da Ericeira. As escarpas, claro, eram impossíveis de escalar e qualquer ajuda seria impossível. A única solução parece ser prosseguir, pois então já não há certezas de nada e um quase pânico instalou-se em nós. A água insiste em desalojar-nos das rochas que, molhadas pelas ondas, revelam-se escorregadias na camada gordurosa que se denuncia, cobrindo-as, fazendo-nos hesitar antes de largarmos a precária segurança duma e, compassadamente com o movimento das ondas que se abatem ameaçadoras, fortes, tentar alcançar uma nova base de apoio, sempre mais longe numa fuga para a frente que se mostrava como a única esperança a ter, rumo à Foz do Lisandro – sem exagero neste caso a salvação, pois ambos já receávamos pelo fim da aventura e disso não fazíamos entre nós silêncio.
A mudança de marés, nem sequer liminarmente prevista pela inconsciência da falsa coragem da juventude, ameaçava de forma grave o verão de 76, na Ericeira, e nós sentíamo-nos pequenos demais perante a força da água que lutava com vigor em arrancar-nos dos frágeis poisos e arrastar-nos para os remoinhos que se formavam quando a água refluía após embater com estrépito na imponência do muro de pedra que se erguia à nossa esquerda. Houve momento em que vimos lá no cimo das escarpas pessoas que apontavam para nós e pareciam gritar, mas nada ouvíamos para além dos nossos medos e da forte língua do mar quando vocifera reclamando a expulsão dos estranhos que ousam violar a monotonia da sua eterna luta contra a terra que o limita em fronteiras que a sua milenar persistência vai corroendo.
Não tenho ideias sobre a duração temporal até chegarmos – salvos! à já nossa Terra Prometida, e a foz do Lisandro por certo foi na altura a visão mais encantadora que tive(mos), mesmo que a sua minúscula praia seja uma desilusão para conceitos estivais. Para nós, que desesperamos vezes sem conta em a atingir, foi na altura tudo, nesta ampla afirmação incluo a vida.
Pouco mais há a referir da minha estadia na Ericeira com excepção da peculiar viagem de regresso a Lisboa, mas essa terá as chamadas honras de merecer post à parte deste, pois merece ser narrada com exclusividade. Até breve.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Engraçado, ando desde ontem a pensar num 'post', para o 'chuinga' sobre os dias 'seguintes'. Força, web!

sábado, novembro 20, 2004 8:42:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vrum vrum meteu a 1ª e já vai a acelerar!
Vai vai vai, que a mim até me faltou o folêgo!
Suspiro de alívio, no fim...gostei da mudança
th

sábado, novembro 20, 2004 11:00:00 da tarde  
Blogger Madalena said...

Estava a ler e a pensar que tudo tinha acabado bem, porque estava a ler... Felizmente.
Quando se é novo faz-se cada uma!!!

domingo, novembro 21, 2004 9:06:00 da tarde  

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