terça-feira, novembro 09, 2004

A "cota-cota" e a justiça divina

Greg Howard de seu nome. Um negro norte-americano que jogou basquetebol na Académica de LM, um calmeirão para mais de dois metros que hoje deve jogar nas reservas do Harlem. O Greg tinha umas mãos enormes e uma agilidade que não era comum para quem tinha esqueleto XL e ficaram famosas as jogadas em que ele entrava no garrafão em vôo para agarrar a bola que era atirada para zonas aéreas dificilmente abordáveis e, com a sua enorme mão, agarrava-a e metia-a no cesto - tudo no mesmo salto...

Após algumas experiências feitas chegamos à conclusão que o bom do Greg tinha pulmões proporcionais à mão, ou seja: cigarro comunitárioque passasse por ela aí morria, sem que o ritual da roda se cumprisse e obrigando sempre a novas manufacturas que, precavidamente, iniciavam a sua viagem de sonhos pelo lado contrário do círculo de devotos. Portanto e como segunda ilação, o Greg era também surrão: egoísta, não partilhava aquilo que tanto apreciava e eram até os putos que lhe levavam para com ele ouvirem algo dum mundo que era tão atractivo visto nos cinemas e revistas, e isto pela boca duma personalidade, como eram as estrelas da bola-ao-cesto e o Greg era uma delas.

Ali bem perto da cervejaria Tico-Tico, em LM, na Casa das Beiras que em anexo tinha um cinema, reunia-se um grupo de miúdos da zona e aqueles doutras mais distantes que são sempre atraídos pela amizade escolar com um dos participantes e acabam por ficar, integrando-se no grupo como se morassem no bairro.
As nossas reuniões sob o caramanchão junto ao campo de ténis eram tudo menos exóticas. Desde o desmontar de cabeças de motor de motorizadas, ao fumar doutras cabeças bem desfeitas e enroladas em forma cilíndrica, por lá existia e passava-se o trivial de qualquer outro local de reunião de miúdos da cidade, com algumas vantagens que não eram só o tal cinema e o bar da Casa das Beiras, que organizava uns bailes magníficos onde tudo que era miúda bonita aparecia, ou seja todas.

E não eram só, porque ali a cem metros estava o tal Tico-Tico e a sua fauna de habitantes de mesas avençados ao mês, que eram os estudantes da residência universitária em frente, o que tornava o café local de eleição para outro tipo de conversas e debates inspirados, mesmo mais mundanos pese a sua componente ideológico-onírica, que aqueles que as especialidades vegetais sorvidas fabricavam.

Já por algumas vezes as conversas tinham-se estendido aos quartos e, nem me lembro bem como, houve uma primeira vez em que olhamos com espanto e admiração o famoso Greg, aquele negro enorme e de cabelo à Jimmy, e que estava ao nosso lado, sorridente e bem disposto por ter na mão um produto genuínamente africano e de reputada qualidade, por certo, se comparado com as mistelas caribenhas e mexicanas que a globalização hippie trouxe à América irreverente saída do Woodstock. De certo modo sentíamo-nos uns eleitos e privilegiados por privar com tal personalidade, que reunía todos os ingredientes para aparecer aos nossos olhos como um herói.

Assim, e com muito prazer, partilhavamos as 'bananas' e os 'sticks' com o americano, ele contava-nos meia dúzia de patranhas e ria-se muito, nós riamo-nos também mas começamos pouco a pouco a comentar entre nós que "- o americano é um surrão, fuma tudo e só passa quando está beata".
Já era abuso e era preciso fazer algo. A ideia apareceu naturalmente quando um produto requintado por lá circulou, nem mais nem menos que uma rara cota-cota do Malawi, trazida por dois irmãos que eram de Milange e estudavam em Lourenço Marques, os Murta. Um tinha uma Honda 250 branca e era o mais velho e mais baixo, e o outro, um calmeirão, tinha uma BSA 650 preta que comprou a um sul-africano, moto pesadíssima e com a caixa de velocidades no lado contrário ao que as japonesas então começavam a impor, como veio a acontecer e hoje subsiste com adesão da marca inglesa sobrevivente desses tempos, a Triumph.

Convém referir que a cota-cota malawiana era um produto quase mítico e contavam as lendas muitas coisas sobre ele, desde que era produzida numa determinada ilha do lago Niassa - e só essa é que era a genuína 'cota-cota', como que o próprio governo de lá a exportava, controlando rigídamente a sua produção pelo que pouca aparecia no nosso pequeno mercado paralelo. Senhora de elevados atributos, ganhara fama pelo proveito que dava, pelo que era dama por todos cortejada mas que muitas poucas vezes os nossos lábios sentiam. Um must, portanto.

Decidiu-se ir fumar uma cota-cota com o Greg e, em descuido que ele muito iria apreciar, o charro seria posto a circular pelo seu lado, de forma a ele ser o primeiro a fumar. Dito e feito, o menino quando se apanhou com ele na mão fez o habitual e deu de meter fumo lá para dentro, que parecia ser dono dum depósito roto... na obscuridade, quebrada pela luz que entrava no quarto pela janela que dava para o bulício da avenida, só se via a chama do cigarro aceso a progredir sem interrupção enquanto o Greg, surrão, o consumia ignorando os restantes que, desta vez, olhavam fascinados e nada dissimuladamente para aquele poço sem fundo de fumo...

Até que, a cinzas tantas, os olhos dele começaram a abrir-se muito e ele começou a deitar fumo por tudo o que era buraco, e um longo ronco de ataque monumental de tosse iminente soou, parecia que ia explodir entre fumo e perdigotos que voavam por tudo o que era canto, ele desesperado por respirar...
Bem, como resumo final digamos que o Greg Howard passou a olhar de forma mais respeitosa qualquer modesto charro que fosse convidado a partilhar, deixou de ser surrão.

A força selvagem de �frica voltara a soar, educando o primeiro mundo acerca de valores como a partilha e o egoísmo, também o respeito pelo desconhecido que o mundo nos proporciona. Tenho sincera pena que o amigo Greg não faça parte do 'staff' presidencial norte-americano pois, com a experiência obtida e de que aqui deixei fé, provavelmente olharia para o resto do mundo como fonte de qualidade e temperança e não como pai e mãe dos seus problemas como os actuais inquilinos o olham, pois dele só conhecem relatórios e nunca partilharam um acto de irmandade informal, cúmplice. Às vezes penso nisto e, acreditem-me, tenho imensa pena; mas os candidatos são o que são e nem nós nem os do Malawi lá votamos embora, por vezes, nos cruzemos todos nesta vida e neste mundo, e necessitemos de alguma diplomacia para não nos atropelarmos mutuamente.

1 Comments:

Blogger th said...

Memórias e resmungos...pois, memórias com uma ilação que nos leva de �frica até à América, passando pelo Malawi! mesmo sem cabeças de coisa nenhuma, é uma viagem que faço na tua companhia...obrigada

terça-feira, novembro 09, 2004 1:28:00 da manhã  

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